24.2.07

A crise do Estado II

Segundo o ensino do Professor Adriano Moreira, há movimentos de convergência mundialista, ao mesmo tempo que se aceleram processos de divergência e de dispersão e dessa complexidade surgem novas formas políticas, desde os grandes espaços aos órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão.
Dito de outra forma: a planetização dos fenómenos políticos, a marcha para a unidade do mundo, como se nota na existência de uma multiplicação das relações mútuas, vem acompanhada por uma multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão.
Isto é, as relações internacionais são complexas. E as coisas complexas são precisamente aquelas onde há simultaneamente convergência e divergência.
A convergência, a planetização dos fenómenos políticos nota-se na marcha para a unidade do mundo. Problemas como a fome, a explosão demográfica, a domesticação da energia atómica são todos eles indivisíveis.
A divergência nota-se na multiplicação das relações internacionais. Se, por um lado, se assiste a uma multiplicação quantitativa (aumentam os contactos através das velhas formas) e a uma multiplicação qualitativa (surgem novas formas de contactos) das relações internacionais, eis que também se dá uma proliferação dos centros de decisão que se manifesta no aumento do número de Estados (cerca de duas centenas), no aparecimento de novas entidades supra-estaduais, bem como no surgimento de ONGs resultantes da internacionalização da vida privada.
Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do principe sobre a república.
Utilizando as categorias de Maquiavel, diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas.
Mas se utilizarmos termos paralelos diremos que estão em crise os soberanos não estão em crise as nações
Está em crise o modelo absolutista do político, esse que continua o processo dos déspotas esclarecidos como Luís XIV, Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de 1792 a 1796, e que constituiu um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que vai ser continuado por Napoleão, Lenine, Mussolini, Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot.
Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.
Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo.
Está em crise o poder, não está em crise a liberdade. O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt, enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas.
Julgo não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da Nação que pretende resistir como polis ou o da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que a cada nação corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.
Como a este respeito observa Dusan Sidjanski, estes fenómenos enfraquecem a tarefa dos Estados sobre o comportamento de outros grandes actores que saem teoricamente do seu controlo.
Com efeito, a revolução globalista levou à crise do Estado Soberano, principalmente daquele modelo que era representado pelas grandes potências nascidas com o absolutismo. Principalmente dos Estados herdeiros dos grandes projectos de império.
Mas perante o gigantismo do Estado grande demais, eis que também se manifesta a fascinação pelo singular cultural e nacional. Eis que face à tendência para a uniformização e para a imitação de um modelo comum. manifesta-se a vontade de se distinguir pela herança histórica e pela identidade nacional ou regional. Face à massa e ao gigantismo, desenham-se novos valores, a qualidade e a beleza do detalhe, da miniatura. Há portanto lugar a novas formas de nacionalismo.
Como dizia Albert Camus, a Europa tem vivido sempre nesta luta entre o meio-dia e a meia-noite, uma confrontação entre o equilíbrio e o desequilíbrio, as lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrânico, traduzindo-se em a comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade reflectida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas.
Ou como Almada Negreiros proclamava que o Norte e o Sul da Europa são a eterna divergência das duas interpretações possíveis que ligam o particular ao geral: o Norte representando o sentido do particular para o geral; o Sul o do geral para o particular.
Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.
Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas. Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático.
Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.
Dizer que está em crise o Estado Soberano, dizer que o conceito pós-renascentista não serve, significa tentarmos outras formas de procura de um impulso integrador para a organização do político.
Neste sentido, subscrevemos as palavras de Jean Monnet, num discurso de Janeiro de 1968, proferido no Sarre: estou chocado pela diferença entre os princípios que aplicamos dentro das nossas fronteiras e os que aplicamos fora delas. No seio das fronteiras nacionais, os homens já há muito encontraram e aperfeiçoaram meios civilizados para fazer face aos conflitos de interesses; já não precisam de recorrer à força para de se defenderem. As leis e as instituições estabeleceram a igualdade de Estados. Mas fora das suas fronteiras, as nações ainda se comportam como os indivíduos se comportariam se não houvesse leis nem instituições. Todas essas nações, em última instância, se apegam à soberania nacional - isto é, todas essas nações se reservam o direito de julgar a sua própria causa.
A soberania é isso mesmo: o princípio da manutenção da vingança privada nas relações internacionais, o reconhecimento da guerra, a negação de que o poder internacional possa ter como limites o direito e a moral, dado que continua a prevalecer o tem razão quem vence, isto é, que a razão da força é mais forte que a força da razão.
Conforme escrevia Harold Laski, depois da primeira guerra mundial, temos de reconhecer que os Estados devem ser julgados exactamente de acordo com os mesmos princípios que as igrejas, os sindicatos ou as associações científicas. Com relação às pessoas que os constituem, os Estados não constituem pessoas morais, vivendo num plano diferente ou submetidas a princípios diferentesPorque não existe ... diferença qualitativa entre os interesses ou os direitos dos Estados e os interesses ou os direitos das outras associações ou indivíduos. Os seus fins são dos mais vulgares, humanos como todos os outros; têm por missão assegurar a felicidade dos seus membros.
O Estado nada mais é que uma das formas do político, humano, demasiado humano e não é pelo facto de o armarmos de um princípio também inventado pelos homens, o da soberania, que ele passa a ser o advento de Deus à terra. A não ser que consideremos a guerra como a suprema expressão da civilização, quando ela não passa de uma das muitas formas de resolução de conflitos.
E voltando a Laski, sempre diremos que o começo da guerra marca o fim da liberdade; a guerra faz recuar indefinidamente qualquer possibilidade de resolver equitativamente um conflito.
Está em crise aquele conceito de poder que considera que a guerra pertence à essência dos Estados, rejeitando a existência de um árbitro final nas questões internacionais e negando a hipótese teórica de uma paz pelo direito, quando considera, afinal, que a paz é uma continuação da guerra por outros meios.
Rejeitando as consequências absolutistas do soberanismo, da omnipotência do Estado e do próprio pessimismo antropológico, de herança maquiavélica e hobbesiana, em que acabaram por se aliar jacobinismos e corporativismos, há, no entanto, quem, na actualidade, prossiga uma linha de pensamento que parte de Aristóteles e Cícero, passa por São Tomás de Aquino e se vai revigorando com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e outros mais do nosso tempo que permanecem fiéis à perspectiva pluralista do político.
Pensam assim todos aqueles que tentaram atingir a modernidade sem uma solução de ruptura face ao renascimento que significou certa Baixa Idade Média, precisamente aquele que viu emergir os reinos e, depois, os próprios descobrimentos. Foi assim com o nosso humanismo do século de Camões, foi assim com a Inglaterra da continuidade lockeana, com os Países Baixos de Althusius, com a Suíça confederal e com essa revolução evitada que foi a independência norte-americana...
Muitos são os subsolos filosóficos que se cruzam neste pluralismo contemporâneo, onde será difícil encontrar a proclamada dicotomia entre liberais e socialistas ou entre conservadores e progressistas.
Linhas de matriz liberal, de marca moderada e ética, podem retomar Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e outros, como o krausismo liberdadeiro que, entre nós, acaba por preponderar, a partir de Alexandre Herculano e Vicente Ferrer Neto Paiva.
Linhas de matriz socialista podem subir do federalismo de Proudhon ao guildismo, às teses britânicas do self-government e ao cooperativismo.
Linhas do conservadorismo podem retomar certas perspectivas consensualistas do tradicionalismo, reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do solidarismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do soberanismo, do centralismo e do concentracionarismo.
Também algumas teses progressistas podem assentar nas perspectivas da sociedade sem Estado, do socialismo utópico, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicissímas teses da polis de há vinte e cinco séculos.
À direita e à esquerda, pluralismo, individualismo, democracia, funcionalismo, divisão e separação de poderes, podem irmanar-se na defesa daquele antiquíssimo regime misto que tanto rejeita o atomicismo como o colectivismo.
À direita e à esquerda, através do humanismo cristão, católico ou protestante, ou do humanismo laico, neoclássico ou modernizante, muitos se irmanam numa concepção anti-absolutista do político, através do ideal histórico concreto de consenso, da política como arte de unir os contrários ou os simples divergentes pela persuasão e pelo consentimento.
Seguindo a lição de Hannah Arendt, diremos que o soberanismo aceita a velha ideia de poder absoluto acompanhou a ascensão do Estado-nação soberano europeu, cujos primeiros porta-vozes foram Jean Bodin, na França do século dezasseis, e Thomas Hobbes, na Inglaterra do século dezassete, mas que existe, no entanto, uma outra tradição e um outro vocabulário não menos velhos e veneráveis. Quando a cidade-estado de Atenas chamou à sua constituição de isonomia, ou quando os romanos disseram ser a civitas a sua forma de governo, tinham em mente um conceito de poder e lei cuja essência não se fiava na relação ordem-obediência e não identificava poder com domínio ou lei com ordens.
Aquele conceito que levou os federalistas norte-americanos como James Madison (1751-1836), a dizer que todos os governos repousam na opinião e à elaboração de uma constituição como a norte-americana onde foi possível considerar que o tratados externos são parte integrante da lei do país porque, como dizia o juiz James Wilson em 1793, o termo soberania, para a Constituição dos Estados Unidos, é completamente desconhecido.
Se o soberanismo adopta o modelo do contrato social de Hobbes, onde surge uma versão vertical do contrato reduzido ao pactum subjectionis que leva a um monopólio do poder, segundo o qual todo o indivíduo celebra um acordo com a autoridade estritamente secular para garantir a sua segurança, por cuja protecção ele renuncia a todos os direitos e poderes, haveria uma outra versão do mesmo contrato, a de Locke, marcado pela versão horizontal onde o elemento marcante já seria o prévio pactum unionis. Aqui já não é o indivíduo que estabelece o governo, mas antes o intermediário da societas, entendida no sentido latino como aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo. Assim, se o pactum unionis implica a limitação do poder de cada indivíduo deixa intacto o poder da sociedade; a sociedade então estabelece um governo, mas, como dizia John Adams (1735-1826) sobre o firme terreno de um contrato original entre indivíduos independentes
Esta seria uma nova versão da antiga potestas in populo. Esta seria a única forma de governo em que o povo é mantido pela força de promessas mútuas e não por reminiscências históricas ou homogeneidade étnica (como no estado-nação) ou pelo Leviathan de Hobbes que "intimida a todos" e desta forma une a todos.
A linha soberanista que vai do absolutismo ao modelo bonapartista de Estado-nação, ao considerar a soberania como o fim da história do político, como o cume unidimensionalizador do corpo político, veio destruir a necessária visão pluralista da polis.
Esse intervalo de modernidade sempre impediu que se concebesse o político como todo o espaço de sociabilidade institucional que ultrapassa o doméstico, não querendo admitir que pode haver político antes da estruturação vertical, hierarquista e piramidal dos Estados a que chegámos e que tem de haver político para além dos mesmos.
O político é plural e insinua-se através de sucessivos e heterogéneos estratos. O político é o que ultrapassa a aldeia e que só acaba na república universal. Porque há várias sociedades políticas, várias sociedades perfeitas que se acumulam, umas mais superiores e mais perfeitas, outras menos superiores e menos perfeitas.
Logo, que só pode resolver-se o problema pela via do princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada sociedade perfeita tem de ser autónoma, mas nem por isso deixa se inserir-se no âmbito de outras sociedade perfeitas, também autónomas.
Cada sociedade política é autónoma, isto é, tem poderes para estabelecer as suas próprias regras, tem um poder supremo de acordo com a sua própria natureza, um poder supremo na sua própria ordem, um poder supremo da exacta natureza do poder da sociedade mais superior onde se insira.
Assim sendo, havendo essa repartição originária do poder político por todos os corpos sociais perfeitos, não há uma soberania una, inalienável, indivisível e imprescritível. O próprio poder supremo é plural, contratualizável, divisível e susceptível de extinção.
O poder político não está apenas concentrado na cabeça do corpo político. Pelo contrário, reparte-se originariamente, constituintemente, por todos os corpos sociais dotados de perfeição.
Deste modo, cada corpo social tem um certo grau de autonomia para a realização da sua função. E o corpo político não passa de uma instituição de instituições de um macrocosmos de macrocosmos sociais, de uma rede de corpos sociais, de um network structure.
Porque há uma diversidade que apenas se une pela unidade de fim, pela unidade do bem comum que a mobiliza.
Portanto, uma sociedade de ordem superior não deve intervir na esfera de autonomia de uma sociedade de ordem inferior, da mesma maneira como uma sociedade de ordem inferior também pode transferir funções e consequentes poderes para uma sociedade de ordem superior.
Porque o princípio da subsidariedade é o mesmo que o princípio da subjectividade da sociedade. Da consideração de cada sociedade como um sujeito e não como um objecto ou como um contrapoder.
Que vários níveis de sociedades políticas podem coexistir por sobre a mesma multitudo. Porque sendo a polis mera essência relacional, cuja essência substancial é o indivíduo, pode este desdobrar-se participativamente, conforme os interesses e os bens comuns que lhe dão comunhão com os outros.
Dizer isto é aceitar o clássico princípio da polis, do respectivo entendimento como um conjunto de cidadãos.
Cada unidade substancial da polis, isto é, cada indivíduo, possui sucessivos status, do status libertatis ao status familiae, do status civitatis, da comunidade de base territorial ao estatuto de cidadão do género humano, como membro da comunidade internacional, da civitas humana ou civitas maxima.
Dizer que, em nome da dimensão social da pessoa, há o familiar e o profissional, mas que, em nome da dimensão política da mesma pessoa, há o municipal, o regional, o nacional e o universal, tentando conceber a democracia como aquele regime misto que não se esgota no estatismo e que até o deve superar, renegando tanto o individualismo, hobbesiano ou jacobino, como o corporativismo hierarquista que, contra-revolucionariamente, procurou antepor-se-lhe.
De certa maneira, retomar a perspectiva de algum federalismo integral, mas compensando-o com a visão consensualista do contrato social.
Isto é, pondo o assento tónico no pactum unionis, considerando como fundamental o pacto que constitui a aliança horizontal da societas desvalorizando o pactum subjectionis do contrato de governo, perspectivado como instrumental, dado que este teria de conservar intacto o poder da sociedade.
Seguindo, algumas das linhas de pensamento de Otfried Höffe, diremos que importa superar certos preconceitos da filosofia política da modernidade que pensa em categorias de amigo-inimigo, de decisäo e sua efectivação, de comando e obediência e tende a uma absolutização do direito positivo e do Estado.
Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade.
Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou democrático, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.
Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual.
Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, que decretou a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos submetidos a um mesmo ente coordenador.
Está em crise aquele modelo absolutista que procurou territorializar um determinado espírito, que transformou a polis em propriedade, isto é, aquilo que é ser, em simples coisa que se pode ter, essa historicidade de um território, essa territorialização de uma história.
Foi esse o modelo, maioritariamente dito como Estado-nação, que procurou impor sobre todo o espaço do seu território a mesma língua, os mesmos costumes, um exército permanente baseado na conscrição, um sistema de ensino público único e que tratou de esatabelecer para todas as colectividades territoriais menores o mesmo modelo de pronto-a-vestir administrativo, atomicizando o espaço e homogeneizando as divisões segundo um modelo único.
Não está em crise a nação libertadora ou resistente, sobretudo aquela que continua a ser marcada pelo small is beautiful, que, conforme Jacob Burckhardt, existe para que haja no mundo um cantinho de terra onde o maior número de habitantes possam gozar a qualidade de cidadãos no verdadeiro sentido da palavra ... o pequeno Estado não possui nada a não ser a verdadeira e real liberdade pela qual compensa plenamente no plano ideal as enormes vantagens e até o poder dos grandes Estados
Se a nação garantir a presença no poder global dos elementos particulares - permanecendo distintos e reconhecíveis, se proceder a uma simbiose sem confusão nem desaparição das especificidades, como Pierre Duclos considerava a essência do federalismo.
Essa qualquer solução que tome por regra o respeito pelos dois termos antinómicos em conflito, compondo-os de tal maneira que a resultante da sua tensão seja positiva, ou, segundo os termos da teoria dos jogos, determinando um optimum no qual se conciliem os dois maxima contraditórios , conforme os ensinamentos de Denis de Rougemont.
Esse modelo que diríamos radicalmente pluralista, fiel aquele antiquíssimo conceito de arte política, como a arte de governar pela persuasão e pelo consentimento, pelo juntar e conciliar contrários, tecendo os opostos.
Recuperando o princípio da subsidariedade, da subjectividade da sociedade, e remontando ao pluralismo inicial das próprias teses iniciais do político.
Assim se fará conciliar a região com a liberdade nacional, com as nações que são liberdade e libertação. Com esse fervilhar espontâneo de sociedades diversas que rodeiam as pessoas sob a unidade viva de uma tradição histórica e de uma cultura particularizada na sua expressão, mas virtualmente universal, com a nação como uma realidade mista e não cristalizada: na base, receptáculo de uma multiplicidade de sociedades que não lhe cabe digerir, mas sim manter vigorosas; no cume, se não é uma comunidade no sentido perfeito da palavra, é, pelo menos, já comunitária, laço flexível e vivo entre a universalidade espiritual, a única que cada pessoa como tal pode alcançar e comportar, e as sociedades biológicas que cercam e retêm o indivíduo, como expressava Emanuel Mounier.
Algo que está enraizado no chão físico da origem do grupo e no chão moral da história, como assinalava Jacques Maritain.
A polis só pode ser entendida como a tensão dialéctica entre o poder e a liberdade, tal como o direito só pode conceber-se como o diálogo da justiça com a força. A polis só pode ser entendida como o espaço de diálogo entre a decisão e a participação, entre a governação e a cidadania, como a exigência de unidade na diversidade, como a harmonia dos discordes.
Este entendimento pluralista da polis, este perspectivar a polis, não como uma sociedade, mas como um mosaico de sociedades vivas. De sociedades imperfeitas, ou consociações simples ou privadas, e de sociedades complexas, já de carácter público. Este entendimento da polis como um macrocosmos de macrocosmos e microcosmos políticos e sociais, como um mosaico de espaços de cidadania, isto é, de espaços de participação política na decisão.
Só assim pode superar-se a tentação corporativista, para a qual cada grupo tem uma posição pré-definida, pelo a priori de um preceito, no modelo de participação na decisão e onde o próprio conceito de representação obedece a um regulamento estatuidor.
Os grupos, as consociações, para o corporativismo, são sempre concebidos como corpos intermediários entre o indivíduo e o cume do Estado, negando-se o individualismo, a espontaneidade da cidadania e comprimindo-se a política que deixa de ser entendida como um espaço de conflitualidade criadora, de luta entre os grupos, com a consequente negociação e troca.
Porque o essencial na política é sempre o afrontamento, o ajustamento, a dinâmica, através de constelações que se fazem e desfazem e de uma pluralidade de centros de decisão.
Só assim pode superar-se a tentação jacobinista, simultaneamente individualista e estatista, onde o individualismo se transforma num cidadanismo estatizante que proíbe a existência de qualquer espaço de participação política entre a individualidade e a estadualidade e onde também se nega a hipótese de um político supra-estadual.
Se o sistema político tem de ser entendido como um sistema autónomo e aberto, como um sistema que tem relações de troca com o seu ambiente, não pode deixar de ser concebido como autónomo e aberto tanto face aos subsistemas sociais do seu interior, como face aos subsistemas políticos, também marcados pela autonomia e pela abertura que o integram.
Isto é, o espaço do político não pode ser monopolizado pelo estadual nem ser subjugado pelo soberano, dado que no chamado infra-estadual também circula o político. Mesmo quando o estadual coincide com o nacional, o sistema político não deixa de ser um complexo de sistemas políticos e de subsistemas sociais.
A região, dentro do espaço estadual, também é um sistema político, dotado do seu próprio circuito de decisão, não podendo ser reduzida ao simples circuito administrativo. Em certo sentido, é tão sociedade perfeita quanto o próprio Estado. Pode não ter ius legationis, ius tractum, ius jurisdictionis e ius bellum, mas tem povo, território e poder político, tem um poder de decisão que já não é apenas técnico, pois que decide sobre fins, sendo dotada dos meios necessários para os alcançar. Isto é, tem liberdade, na escolha de fins, e poder para os executar.
Quem advogar uma visão pluralista da organização do político, onde cada estrato seja sempre uma manifestação do indivíduo, ao contrário do que defendia o corporativismo; quem advogar que cada estrato não pode diluir-se piramidalmente no todo soberano, ao contrário das teses jacobinas, tem de repudiar a perspectiva do político como o unidimensional e o homogéneo e tem de defender a necessidade de cada estrato poder desenvolver as respectivas potencialidades.
O reforço das autonomias, neste sentido, não é o contrário das liberdades nacionais. Com uma nação que não se meça pelo Estado-aparelho-de-poder, mas sim por uma metapolítica de identidade que pode não coincidir com os Estados a que chegámos. Com a necessidade de uma comunidade de significações partilhadas, com um povo reunido por hábitos complementares de comunicação, como diria Karl Deutsch.
Porque uma só nação pode ainda hoje estar repartida por vários Estados. Porque uma só nação pode ter no seu seio várias regiões. Porque nem sempre as regiões coincidem com as nações. Porque nem sempre o sentimento de uma comunidade pelas coisas que se amam coincide com a racionalidade do Estado.
Nação é sobretudo comunhão em torno das coisas que se amam, é civitas amoris, é o tecer espontâneo de laços no plano das articulações laterais e verticais por onde se gera uma polis.
Direi que talvez existam realidades políticas diferentes dos Estados-nações, dos Estados que querem, através do aparelho de poder, construir nações. Talvez existam realidades políticas que são o preciso inverso, realidades políticas a que chamaremos Nações- Estados.
Direi que Portugal é uma dessas raras entidades de nação-Estado que, portanto não tem que temer a plena liberdade das suas regiões, dado que elas, felizmente, não constituem nações sem território, povos sem Estado ou pretensas nacionalidades.
Por aqui pode passar o consenso, mesmo que se chame federação. Por aqui pode passar a divisibilidade da soberania, a descolonização interna e a pluralidade das pertenças. Não continuemos a traduzir em calão juridicidades feitas para outras realidades, pensadas para outros medos, sofridas por outras culturas.
Julgo que não vale a pena confundir os nomes com as coisas nomeadas. Com efeito, no caso do Estado e da nação, da soberania e da independência, bem como no tocante à região ou à federação, os mesmos nomes cobrem realidades completamente diferentes quer em termos qualitativos, quer em termos quantitativos.
Acresce que, nestes domínios, os nomes deixam de ser os conceitos da liberdade intelectual e vão-se transformando em preceitos legislativamente estabelecidos.
Bem podem as normas estabelecidas tentar dizer que são iguais realidades completamente distintas. Acontece que nem todos os Estados se confundem com Nação e muitas das entidades a que se dá o nome de região até constituem substanciais nações. A nudez forte da verdade continua a ser recoberta pela fantasia de muitos mantos diáfanos dos nominalismos científicos. O espaço do nacional do tamanho qualitativo e quantitativo de uma Alemanha não pode transpor-se mecanicamente para o nacional português. Uma land alemã só por ficção equivale a uma eventual região administrativa portuguesa. O local português, chame-se município ou freguesia, não corresponde a níveis locais luxemburgueses, mesmo com nomes paralelos. Rejeitemos a mania geometrizante que nos foi imposta pelo racionalismo iluminista.
Aliás, as palavras nação e federação não significam o mesmo para todos. Alguns têm uma atitude mística de devoção para com uma dessas palavras, enquanto outros as diabolizam. As falsas ideias claras dos que fazem uma dicotomia entre o nacionalismo e o federalismo talvez esqueça que, por exemplo, há um nacionalismo português que fala da nação como uma federação de autonomias (António Sardinha), reflectindo todo um combate histórico com a perspectiva do unitarismo e do centralismo herdados do jacobinismo, que vai de certo liberalismo não-herculanista ao republicanismo, do salazarismo ao próprio revolucionarismo do PREC:
Mas federalistas devotos da Suíça ou nacionalistas defensores da autodeterminação portuguesa, podem não estar tão distantes quanto parece de britânicos defensores da soberania do Reino Unido. A Holanda existe porque foi federação de províncias
Qualquer deles invoca a existência de uma realidade política anterior ao desabrochar do Estado Absolutista ou do Estado-Nação revolucionário. Qualquer deles resiste numa realidade política anterior ao nascimento dos Estados modernos ou das nações que nacionalizaram os modelos absolutistas.
É partindo deste modelo de nacionalismo que talvez eu possa conciliar-me com as teses fundamentais do federalismo integral ou do federalismo de associação, que constitui um dos pilares fundamentais da original Revolução Atlântica, daquela que podia ter sido desencadeada pelo processo de 1 de Dezembro de 1640, mas que acabou por dominar a Revolução Inglesa e a Revolução norte-americana.
Concordamos com o principal da mensagem, embora não com a terminologia utilizada por Karl Popper, quando ele denuncia a terrivel heresia do nacionalismo, ou mais exactamente ... do Estado-Nação ... a doutrina que continua a ser defendida e é, pretensamente, uma exigência moral no sentido de fazer coincidir as fronteiras do Estado com a fronteira do território colonizado pela nação. O erro de base desta teoria ou pretensão é a suposição de que os povos ou as nações existem antes dos Estados, como as raças, como corpos naturais, e que devem ser vestidos por medida em função do Estado. Na realidade, eles são um produto do Estado.
O problema está em que não só existem mesmo entidades políticas anteriores aos Estados modernos (v.g. os reinos), como pode haver nações-Estados, nações que ou fizeram os Estados ou querendo constituir ou construir um Estado, essas que procuram seguir os elogiados gregos da luta pela liberdade ... contra o domínio persa, onde a liberdade não é aqui uma ideologia, mas antes uma forma de vida que a torna melhor e mais digna.
Mesmo no tocante à ideia de federação, importa assinalar que se há um federalismo que exige uma espécie de dupla soberania, mantendo um espaço de autogoverno das unidades políticas de base, há, por outro, um federalismo unitarista, contrário à subsidariedade e à divisibilidade da soberania.
O primeiro é aquele espírito que perpassa nos Federalist Papers, segundo o qual os poderes delegados no novo centro devem ser poucos e definidos, enquanto os que permanecem nos anteriores centros devem ser numerosos e indefinidos.
Além disso, só podem, neste sentido, ser federalistas os que acentuam a necessidade do federalismo internacional ser acompanhado por idêntico federalismo no plano interno, porque a soberania tanto é divisível para cima como para baixo.
Este tipo de federalismo tem de ser adversário da Europa das potências e, portanto, tanto do nacionalismo coligado da nova tentativa de pentarquia, como daqueles federalistas que apenas pretendem um contrato federador perpetuador do hierarquismo.
Do mesmo modo rejeita certo federalismo jacobino que apenas vê abstractos cidadãos do todo europeu, sem assento nos corpos intermediários das nações, das regiões e das autarquias locais. Esses jacobinos federalistas que propõem uma Europa dirigida por um congresso multitudinário, como se a Europa não devesse ser uma democracia de muitas democracias, um mosaico de assimetrias, de muitas pequenas pedras que só em conjunto ganham a solidez da forma.
Insistirmos na dialéctica nacionalismo/ federalismo é continuarmos a considerar o político como algo que é exclusivamente determinado pela geografia, aquele territorialismo que reduz o político a uma tentativa de ordenação do espaço através de uma pirâmide hierárquica, onde o paroquial e o comunal se tem de integrar no círculo do provincial ou do regional e este no do nacional.
Como se no nosso tempo a mobilidade dos homens e da economia não tivesse despedaçado a solidariedade espacial das comunidades territoriais. Como se o Estado-Nação não tivesse sido ultrapassado por outras formas de organização dos homens, nomeadamente os agrupamentos temporários de interesses.
Concordamos com Guéhenno, quando este reconhece que o Estado-nação, porque prisioneiro de uma concepção espacial de poder, com essa pretensão de combinar num quadro único as dimensões política, cultural, económica e militar
Reconhecemos que vivemos na idade das redes onde a relação dos cidadãos com o corpo político entrou em concorrência com a infinidade de conexões que eles estabelecem fora dele, de maneira que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens em sociedade, surge como uma actividade secundária, isto é, como uma construção artificial desadaptada para a relação dos problemas práticos do mundo contemporâneo
De facto em lugar de um espaço político, lugar de solidariedade colectiva, não há senão percepções dominantes, tão efémeras quanto os interesses que as manipulam. Ao mesmo tempo, a atomicização e a homogeneização. Uma sociedade que infinitamente se fragmenta, sem memória e sem solidariedade, uma sociedade que não encontra a sua unidade a não ser na sucessão de imagens que os media lhe reenviam em cada semana, a partir dela mesma. Um sociedade sem cidadãos e, portanto, finalmente, uma não-sociedade.
Concordamos que o espaço deixou de ser o critério pertinente, mas continuamos a acreditar na política, exigimos o regresso à política, o regresso ao humanismo, o regresso aos valores clássicos das concepções geo-humanas.
Não queremos ser colonizados por novos impérios sem imperadores.
Queremos apenas dizer que importa dessacralizar o Estado e desdemonizar a Nação, proclamando, por exemplo que a independência nacional não tem necessariamente que coincidir com a soberania estadual. Porque, como dizia Harold Laski, a soberania nacional, na sua acepção integral, implica a faculdade de arruinar uma civilização; esta implicação não pode ser considerada como necessária para a independência nacional.
Queremos, sobretudo, uma ordem internacional e grandes espaços onde se dê lugar aos pequenos Estados e por isso acreditamos, como Friedrich Hayek, que os pequenos Estados só podem preservar a sua independência, quer na esfera internacional quer na nacional, quando exista um sistema jurídico autêntico, um sistema jurídico que assegure a invariável vigência de certas leis e a impossibilidade de a autoridade que detém o poder de as impor, o utilizar para qualquer outro fim.
Os Estados não podem continuar a ser entidades que vivam em regime de out law só porque invocam a qualidade de soberanos. Para fazermos com que a paz vença a guerra, impõe-se que a paz não seja a continuação da guerra por outros meios, impõe-se que ela não seja uma paz dos cemitérios, mas antes uma paz pelo direito.
Para o conseguirmos, basta que apliquemos à ordem dita internacional aqueles princípios que já utilizamos para as ordens internas, os princípios do Estado de Direito e da democracia.
O que precisamos é de proceder à aplicação aos assuntos internacionais da democracia, o único intercâmbio pacífico que até hoje foi inventado. O que precisamos é de evitar que as pessoas se matem umas às outras, para o que não basta exprimir um piedoso desejo, fazer uma declaração dizendo que não se deve matar, mas antes atribuirmos a uma autoridade os poderes necessários para efectivamente o evitar. O que precisamos é de dar força ao direito, também no plano internacional.
Precisamos de uma autoridade supra-nacional... muito poderosa, mas é preciso que a sua constituição seja tal que em caso algum ela se não possa transformar numa tirania. É que se o direito, no plano interno, no plano da relação entre o Estado e os indivíduos, serve para a defesa contra a tirania, também deve servir, no plano das relações internacionais, para a defesa contra a tirania de um eventualmente novo super-Estado sobre as comunidades nacionais.
Em qualquer dos casos nunca chegarmos a impedir o abuso do poder se não estivermos preparados para limitar o poder. E não há situação que menos possa preservar a democracia ou contribuir para o seu crescimento do que a situação na qual a maior parte das decisões importantes esteja nas mãos de uma organização demasiado poderosa para que o homem vulgar a possa vigiar ou, sequer, abranger. Porque quando o âmbito das medidas políticas se torna tão vasto que quase só a burocracia possui delas o conhecimento necessário, o impulso necessário cada pessoa, retrai-se, dilui-se.
Só uma política que defenda o pluralismo a nível interno, que, começando por respeitar a autonomia da pessoa, respeite a autonomia dos grupos que esta constitui, pode criar, no plano internacional, criar uma ordem que respeite as autonomias de cada unidade política nacional ou estadual.

A crise do Estado

A actual crise do Estado
O político, conforme a concepção do mundo e da vida a que aderimos, é tudo quanto ultrapassa o doméstico, isto é, aquilo que vai além do familiar e do económico, da oikos dos gregos ou da domus dos romanos.
O político é esse largo espaço intermédio que, crescendo a partir da aldeia, constitui a polis e que pode caminhar para a república universal, o que, aliás, acontece sempre que cada polis actua segundo o imperativo categórico kantiano, ou segundo a vontade geral de Rousseau, onde cada uma das respectivas condutas pode ser considerada como máxima universal, onde cada uma das poleis decide como se ela própria fosse a República Universal..
Logo, o político supera o Estado Soberano, tanto pelo chamado infra-estadual, como pelo próprio supra-estatal. Neste sentido, pode, e deve, haver poleis em todas as comunidades assentes no cidadanismo, sejam elas concelhos, regiões ou próprios grandes espaços, esses patamares intermédios entre os Estados a que chegámos e o Estado Mundial, conforme a definição do Professor Adriano Moreira, essa exigência da weberiana ética da convicção.
Foi esta a linha de força da nossa dissertação de doutoramento de 1990, Ensaio sobre o Problema do Estado, onde, depois de abordarmos o percurso que vai da aldeia à república universal, inventariávamos as tentativas de superação da razão de Estado pelo Estado-razão. Continua a ser este o alento que me leva a aderir àquele europeísmo que não ofende a autonomia das nações, entendidas mais como povos do que como Estados.
Julgo pertencer àquele grupo de pensamento político que não considera o Estado Soberano como o fim da história do político. Com esse já antiquado Estado Moderno, consolidado com o absolutismo, que pratica o culto da religião secular do soberanismo, dizendo que um qualquer centro político tanto deve ter uma soberania externa, a puissance absolue et perpétuelle d'une république, conforme as teses de Jean Bodin, implicando a definição de fronteiras e a definição de nacionalidade, como uma soberania interna, o poder absoluto de um soberano já dentro de uma república, conforme o ideologismo leviatânico de Thomas Hobbes, implicando o ius tractum, o ius legationis, o ius iurisdictionis e o ius bellum.
Como Francisco Vitória, consideramos que o Estado como sociedade perfeita é a comunidade que não é parcela de outra comunidade, mas que dispõe de leis próprias, de um conselho próprio e de autoridades suas. É uma comunidade perfeita e integral. Por conseguinte, não está submetida a nenhum poder exterior, pois, neste caso, não seria integral.
Como Vasquez de Menchaca, aceitamos um ius maiestatis, reconhecendo que a razão e a natureza condicionam o poder ao serviço da comunidade, pelo que aqule não é absoluto face ao direito, nem ilimitado, constituindo mero poder preeminente e universal, para dispor de tudo quanto conduza à conservação e saúde da alma e do corpo da república.
Como salienta Francisco Suarez, há um poder supremo, suprema potestas, em cada república, um poder que não reconhece acima de si nenhum poder humano da mesma ordem ou da mesma natureza, isto é, que prossiga o mesmo fim, um poder que não se confude com o dominium, devendo ser entendido como um officium, dado que ele apenas existe por causa do regnum e não do rex.
Isto é, não admitimos a existência de um poder supremo, de natureza diferente dos restantes poderes que lhe estão por baixo, considerado como fonte de todos os poderes, como detentor de uma competência das competências, e insusceptível de limitação pela moral e pelo direito.
Foi assim que surgiu a soberania dita una, inalienável, indivisível e imprescritível.
Com efeito, considero que entre um agrupamento de homens nos limites de um Estado e o agrupamento de homens na totalidade do planeta não há diferença de natureza, mas apenas de extensão.
Da mesma maneira, sufrago a ideia de que, entre o Estado e outras formas políticas ditas infra-estaduais, há mais distâncias de quantidade do que de qualidade.
Sinto por isso algumas reais afinidades com todos aqueles que, depois do holocausto e dos gulags, trataram de apelar às profundidades do libertacionismo cidadanista e à consequente autodeterminação da polis, entendida como autonomia de autonomias, onde a pedra viva da construção é o indiviso do cidadão-homem livre, esse tal ser que nunca se repete.
Essa polis que é sempre comunhão de cidadãos em torno das coisas que se amam e, onde, por sua vez, o cidadão é aquele que participa na decisão, aquele que dá o consentimento, isto é, o exacto contrário daquele que é mero súbdito de um soberano, escravo de um dono ou parcela fungível de um todo, seja ele uma nação, um Estado ou a própria humanidade.
Não posso pois deixar de comungar com todos aqueles que, reagindo contra o absolutismo, tentaram, pela via consensualista, institucionalizar formas de controlo do poder, estabelecendo travões ao mecanismo autofágico do Leviatão soberanista.
Porque no soberanismo absolutista, o poder supremo não só não admitia o controlo fáctico, da divisão e separação de poderes, como o próprio controlo normativo, nomeadamente pela não admissão do conceito de abuso do poder, esse poder supremo que, em nome de um terrorismo da razão, acabou por ser a fonte primordial do próprio terrorismo de Estado.
Também eu quero seguir a esperança de Hannah Arendt no sentido de se mudar o presente conceito de Estado e os únicos rudimentos que vejo para um novo conceito de Estado podem ser encontrados no sistema federalista, cuja vantagem é que o poder não vem nem de cima nem de baixo, mas é dirigido horizontalmente de modo que as unidades federadas refreiam e controlam mutuamente os poderes.
Um conceito que, no plano das relações externas levaria a uma autoridade não supranacional, mas sim internacional, dado que uma autoridade supranacional seria ou ineficaz ou monopolizada pela nação que fosse por acaso a mais forte, e assim levaria a um governo mundial, que facilmente se tornaria a mais assustadora tirania concebível, já que não haveria escapatória para a sua força policial global - até que ela por fim se despedaçasse.
Que no plano interno, exigiria uma nova forma de governo que é o sistema de conselho que, como sabemos, pereceu em todo lugar e em toda época, destruído directamente pela burocracia dos estados-nações ou pelas máquinas dos partidos e que passaria pela criação de uma série de espaços públicos de lugares de trocas de opinião onde seria possível um processo auto-selectivo que agruparia a elite política verdadeira de um país, mas uma elite aberta, onde poderiam entrar todos os que se interessassem o pelos assuntos públicos.
Com efeito, Arendt não advoga nem a noção de governo mundial nem a de cidadania mundial, como as defenderam certos idealismos liberais. O federalismo que propõe seria horizontalista, implicando uma dupla cidadania: a das pertenças locais, regionais e nacionais e a pertença à oikoumene, as quais seriam complementares.
Ao dizer isto, não subscrevo a propositada confusão feita entre um Estado Soberano e uma Nação autodeterminada, mesmo quando aquela decreta assumir-se como Estado-Nação. Assim, pretendo sufragar a ideia-força que tem sido proclamada pelo Professor Adriano Moreira, para quem está em crise o Estado Soberano, mas não está em crise a Nação.
Glosando este tópico, sempre poderíamos salientar que o que está em crise o Estado a que chegámos, dado que tanto está sujeito ao desafio do unificacionismo mundialista, como também ao small is beautiful dos desafios centrífugos.
Aquilo que, Adriano Moreira, na esteira de Teilhard de Chardin, qualifica como a lei da complexidade crescente nas relações internacionais, que é acompanhada por idêntica complexidade crescente na reconstrução da polis. Há divergências e convergências que só podem ser superadas, não pelo ecletismo ou pela síntese, mas apenas por aquilo que Chardin qualificava por emergência, por aquela energia que lança para cima e para dentro, na direcção de um estado cada vez mais complexo e mais centrado.

Estado de Direito

Estado de Direito
O nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições , passou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, que democratizou a expressão Rechtsstaat da teoria germânica de então, considerando-o como marcado pela absence of arbitrary power on the part of government.
Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.
É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual, implicando, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).
Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Como refere Jacques Chevalier, o Estado de Direito, com efeito, até agora, era apanágio dos juristas, sendo objecto de um discurso de saberes apenas acessível aos iniciados... acontece que o Estado de Direito saiu desta penumbra protectora do campo jurídico ... Bruscamente lançado na praça pública, tornou-se num valor em si, transformando-se numa imposição axiológica, conhecendo uma sobrecarga de significação que lhe dá uma totalmente nova significação.
Na verdade, o conceito de Estado de Direito tem um carácter fecundante, só podendo ser entendido em termos de polaridade face a um Estado de Não Direito, desde os Estados absolutistas que precederam as Revoluções Atlânticas, às experiências autoritárias e totalitárias dos nossos tempos.
E aqui, importa recordar que o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote; segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito, uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano tem poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que pode, quando assim o desejar, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis dado que ele já estava livre antes, porque é livre aquele que pode sê-lo quando desejar; terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.
Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.
O Estado de Direito, portanto, não é um c'est lui, um soberano, situado acima ou fora da sociedade ou comunidade, a que temos de submeter-nos como súbditos, unidimensionalmente perspectivados, mas antes um c'est tout le monde, onde o Estado somos nós, todos e cada um de nós, enquanto cidadãos, enquanto aqueles que participam nas decisões, aqueles são governados porque podem governar.
Isto é, o Estado-aparelho de poder passou a ser visto como simples manifestação do Estado-comunidade. O Estado passou a ser entendido como a concórdia do princeps e da res publica, como a harmonização do Estado-governo e do Estado-comunidade, onde o próprio princeps se perspectiva como uma emanação da res publica.
O Estado é assim a mistura da cidade do comando e da cidade da obediência. Porque, conforme os medievais restauradores da polis, eis que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino, donde deriva o moralizante brocardo do rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É que, conforme refere Blandine Barret-Kriegel, o Estado de Direito resultou de uma dupla operação: primeiro, uma juridificação da política; segundo, uma constitucionalização do poder. Uma operação que deu direito a uma sociedade senhorial e civilizou uma comunidade guerreira. Foi o direito contra o poder, a paz contra a guerra.
No fundo, equivale à velha expressão de Plínio, dirigindo-se a Trajano, quando aquele proclamava que inventámos um Príncipe para deixarmos de ter um dono. Para, em vez de continuarmos a obedecer a outro homem, podermos passar a obedecer a uma abstracção.
Em síntese: a tentativa de passagem de uma razão de Estado a um Estado Razão, a tentativa de transformação da política numa espécie de realização da filosofia entre os homens.
Porque, o que estava antes, e o que está sempre a ameaçar-nos, é o despotismo, conforme a clássica definição de Montesquieu, essa relação de senhor/escravo, onde tudo se reduz a conciliar o governo político e civil com o governo doméstico, os oficiais do Estado com os do serralho, onde o vizir é o déspota dele próprio e cada oficial particular, o vizir.
Voltando a Blandine Barret-Kriegel, sempre poderemos dizer que o Estado de Direito foi marcado pela ideia de um poder que foi capaz de construir uma civilidade política, instituída, não sobre a guerra e o direito à conquista, mas sobre a justiça e a negociação jurídica. Um modelo fundado no direito natural e nas referências bíblicas ao Estado dos Hebreus, a uma sociedade de paz estabelecida por um contrato ‑ em vez de uma sociedade constituída pela guerra ‑ segundo o modelo do pacto bíblico estabelecido entre Deus e Abraão e, depois, entre Deus e Moisés
Porque, como disse Fernando Pessoa, o Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Porque, como escreveu o nosso Manuel Rodrigues Leitão, nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode , está muito perto de fazer o que não pode. Porque todo o poder num Estado de Direito é um poder-dever, um encargo, um ofício (o officium de São Tomás ou o trust de John Locke), onde o poder é potestas com auctoritas e onde o detentor do poder é servidor, servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder; pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder.
O que caracteriza o Estado de Direito, pois, não é apenas o facto de existirem leis dotadas de universalidade (tal qualidade também pode existir num Estado Autocrático), mas o facto das leis existentes não poderem ser modificadas sem o consentimento dos cidadãos dado pelas formas prescritas na lei constitucional ... aquela lei fundamental que regula a modificação de qualquer outra lei incluindo ela mesma, como refere Eric Weil.
Já o nosso António Ribeiro dos Santos, defendia que em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo.
No fundo, o Estado de Direito é aquele que tem menos a ver com a vontade de todos, aquela vontade que atende ao interesse privado e não é senão a soma de vontades particulares, e mais a ver com a vontade geral, com aquela que não atende senão ao interesse comum, conforme profetizava Rousseau. Isto é, eu só posso exigir ao Estado-Aparelho que exerça um poder dever, se, enquanto membro do Estado-Comunidade, eu assumir a exigência ética e cívica de me comportar de tal maneira que a máxima da minha conduta possa transformar-se em lei universal.
Neste sentido, o Estado de Direito assume-se como um processo de moralização da política, onde a moral é um limite da soberania, muito especialmente quando tem de decidir-se em estado de excepção, e onde o direito é um limite do poder
Com o Estado de Direito, parafraseando Luís Cabral de Moncada, visa-se, por um lado, que o direito passe a servir uma política e, por outro, que a política seja limitada por um direito. Como o Estado de Direito, seguindo agora uma imagem de Alceu Amoroso Lima, visa-se, por um lado, que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública

O Estado-razão III

Para o grande sociólogo francês existiria uma consciência colectiva, a qual, em lugar de resultar das consciências individuais, é que produziria estas últimas: tudo o que existe na consciência individual deve ser atribuído à pressão social e a única liberdade do indivíduo é a de individualizar em si a consciência colectiva.
E isto porque a sociedade não se reduz a uma simples soma de indivíduos, mas o sistema em que se traduz a respectiva associação e que representa uma realidade específica, dotada de características próprias.
Enquanto os contra‑revolucionários Bonald (1754-1840) e Maistre (1753-1821) adoptavam um organicismo tradicionalista que exigia a identidade entre o órgão e a função, em nome do princípio da divisão do trabalho, Durkheim, pelo contrário, vem considerar que as estruturas da sociedade podem mudar de função e que uma dinâmica divisão do trabalho implica o aparecimento de novas estruturas e, consequentemente, de novas formas de poder.
Como ele próprio assinala, quanto mais as sociedades se desenvolvem, mais o Estado se desenvolve; as suas funções tornam‑se cada vez mais numerosas, penetram, além disso, todas as outras funções sociais que o mesmo concentra e unifica por isso mesmo. Os progressos da centralização são paralelos aos da civilização.
Assim, refere que o Estado estende progressivamente sobre toda a superfície do território uma rede cada vez mais apertada e complexa de ramificações que se substituem aos órgãos locais pré‑existentes ou os assimilam.
Num conúbio entre Weber e Marx, também Jürgen Habermas considera que o Estado Moderno, que se forma em conexão com o tráfico mercantil das economias territoriais e nacionais em formação a partir das necessidades de uma administração financeira central, viu‑se sempre remetido para a competência profissional de funcionários com preparação jurídica.
Isto é, para além de exércitos permanentes, surgiu uma administração permanente e tiveram de aplicar mais uma arte do que uma ciência.
O Estado resultaria da emergência das sociedades das chamadas culturas superiores (civilizations), em oposição às sociedades ditas mais primitivas, através de três elementos:
- existência de um poder central ( organização estatal da dominação face à organização por parentesco);
- divisão da sociedade em classes socio‑económicas
- estar em vigor algum tipo de mundivivência central (mito, religião superior) que tem como fim uma legitimação eficaz da dominação.
Acontece que o Estado parece ter de abandonar a substância da dominação em favor de uma inserção eficiente das técnicas disponíveis no enquadramento das estratégias impostas pelas próprias coisas ‑ ele parece já não continuar a ser um aparelho para a imposição coactiva de interesses infundamentáveis por princípio e só sustentáveis em termos decisionistas, para se transformar num órgão de uma administração integralmente racional.

O Estado-razão II

No seguimento desta perspectiva weberiana, também Reinhard Bendix assinala o facto da construção do Estado ser inseparável do processo de burocratização, pela qual passou a existir uma Administração Pública com controlo sobre o recrutamento do respectivo pessoal e, portanto, tendencialmente independente tanto da competição política como dos próprios interesses privados.
Esta nova burocracia dos funcionários do Estado vai, aliás, servir como ponta de lança do poder central dos reis contra a aristocracia, situação paralela à própria utilização de tropas mercenárias pelos reis, para ultrapassarem a necessidade de recurso aos exércitos quase privados das aristocracias.
É que toda a burocracia tende sempre a desenvolver a ideia do Estado como algo de mais duradouro que os governos ou as pessoas dos soberanos.
Trata-se, com efeito, de uma burocracia que concebe os ofícios como uma função pública, um officium ou um ministerium, de servus ministerialis, onde, contra a anterior concepção se considera que o cargo público existe para a realização de um determinado fim e com poderes vinculados à respectiva concretização, contrariamente à ideia de honra.
Considera-se também que a competência, porque existe uma missão a cumprir, é mais importante que a fidelidade. Finalmente, salienta-se que a função está marcada pelo princípio da responsabilidade, isto é, que aqueles para os quais existe podem afastar o funcionário do cargo, revogando‑lhe a missão em caso de prevaricação (revocabilidade em lugar de patrimonialidade).
Dentro desta perspectiva, Samuel Finer considera que o Estado surgiu quando se deu uma modificação da estratégia das elites periféricas que abandonaram a sua tradicional resistência perante o centro do sistema político, optando pela tentativa de procurar o respectivo controlo.
Tal momento aconteceu com o fim da sociedade feudal e o aparecimento do Estado Territorial, dado que, a partir desse momento, a relação centro-periferia passou a fazer-se em termos de dominação.
Compreende-se assim que Charles Tily defina o Estado como organização que controla a população ocupando um território definido na medida em que é diferenciada das outras organizações que operam sobre o mesmo território; é autónoma; é centralizada; e as respectivas subdivisões são coordenadas umas com as outras.
O Estado terá nascido contra uma sociedade tradicional que era marcada pela resistência das estruturas comunitárias, pela ossificação da periferia e pela recusa de integração em novas redes de troca. E também não seriam despiciendos alguns factores económicos, dado que o Estado vai proteger novas actividades económicas, desencadear a conversão da agricultura, favorecer a procura de mercados e assegurar o controlo dos mares.
Aliás, outro dos sinais de superação da sociedade feudal está na existência de representações diplomáticas permanentes desde o século XV, elemento revelador do facto do Estado começar a ser pensado como unidade permanente.
Temos, assim, que o Estado é o produto de uma história (a da Europa) e de uma época (a Renascença), constituindo um especial modo de centralização e uma especial estrutura política de coordenação.
Porque a Europa dos séculos XVI e XVII queria o desenvolvimento do comércio, a uniformidade legal, o desaparecimento das barreiras legais.
Assim, o nascimento do Estado corresponde a uma criação do poder e não à simples transmissão do poder, dado que o Estado é fonte autónoma de poder ao mesmo tempo que é desafio para a luta política e não um lugar de reconciliação de interesses opostos.
Além disso, na mesma época, exigia-se um Estado interventor no domínio religioso, para assegurar a unidade e dar protecção às minorias. Não é por acaso que se inventou a soberania para se pôr fim às guerras religiosas em França
Na mesma linha das teses de Weber, eis que o sociólogo francês Émile Durkheim, numa amálgama de hegelianismo e organicismo, conforme a expressão de Bertrand de Jouvenel, e visando procurar superar a incapacidade demonstrada pelo demoliberalismo da época em que viveu face à pressão dos grupos intermediários, veio considerar o Estado como o cérebro social, como o órgão que está encarregado de representar o corpo social no seu conjunto e de o dirigir. É que toda a vida do Estado propriamente dito passa-se não em acções exteriores, em movimentos, mas em deliberações, isto é, em representações. Assim, a sua função essencial é a de pensar dado que não executa nada.
O Estado é entendido como a sede de uma consciência especial, restrita, mas mais alta, mais clara, tendo dele mesmo um mais vivo sentimento, situando-se de tal modo longe os interesses particulares que não pode ter em conta condições especiais, locais, etc., nas quais se encontram.
Considera também que o Estado é o órgão do pensamento social. Não que todo o pensamento social emane do Estado. Mas está lá de duas formas. Uma vem da massa colectiva e é difusa: é feita destes sentimentos, destas aspirações, destas crenças que a sociedade elaborou colectivamente e que estão dispersas em todas as consciências. A outra é elaborada neste órgão especial que se chama Estado ou governo... Uma... permanece na penumbra do subconsciente. Mal nos damos conta de todos estes preconceitos colectivos ... Toda esta vida tem qualquer coisa de espontâneo e de automático, de irreflectido. Pelo contrário, a deliberação, a reflexão é a característica de tudo o que se passa no órgão governamental. É verdadeiramente um órgão de reflexão.
Neste sentido, o papel do Estado, com efeito, não é de exprimir o pensamento irreflectido da multidão, mas de acrescentar a este pensamento irreflectido um pensamento mais meditado e que, por consequência, tem de ser diferente.
O Estado surge, pois, como um mecanismo de comunicação e de transmissão de informações, bem como um instrumento neutro e funcional, claramente separado da sociedade.

O Estado-razão I

O Estado-razão
O Estado Moderno pretende assumir-se como uma entidade política derivada do consentimento racional. Depois da modernidade começar por assumir-se, na sua fase primitiva de revolta como o medievalismo, como uma espécie de razão de Estado, eis que todo o esforço do jusracionalismo vai tentar transformar a mesma razão de Estado num Estado-razão.
Com efeito, o processo de formação do Estado tem a ver com o movimento racionalista construtivista, com aquele conjunto de correntes do pensamento que consideraram dever o homem voltar-se sobre si mesmo, dado que só assim ensimesmado, poderia construir de forma abstracta, através do respectivo intelecto, um sistema perfeito, um transcendente capaz de constituir um dever-ser, um padrão, uma medida para as respectivas condutas.
Que o homem, com o seu cogito, seria um subjectum actuando sobre um objectum. O tal homem que Descartes concebeu como dono e senhor da natureza e que, depois da Revolução Francesa, muito principalmente com o cientismo e com o idealismo alemão, também se assumiu como dono e senhor da sociedade.
Que o objecto perfeito seria algo de intelectivamente construível pela razão e que essa perfeição deveria ser maquinada, mesmo que Deus não existisse, conforme propunha Grócio.
Deu-se assim uma espécie de morte de Deus, de deicídio ou de disdivinização do mundo, quando se considerou que o vértice integrador do cosmos, que a cúpula da humanidade poderia ser ocupada pela nossa consciência individual, pelo pensamento de um só sujeito, voltado sobre si mesmo.
Depois, com o idealismo alemão, não só o próprio objecto passou a ser considerado como um produto da actividade do sujeito, isto é, a coisa passou a extrair-se da própria razão, (Kant), como também se atingiu a identidade do racional com o real e do subjectivo com a verdade (Hegel).
Isto é, surgiu o homem capaz de revolução, o homem capaz de construir o homem novo em nome de uma história escrita anteriormente. Por outras palavras, surgiu a hipótese de uma álgebra da revolução
Ora, se todo o real poderia ser submetido ao espiritual, se todo o mundo poderia e deveria ser comandado por um espírito do mundo, eis que cada um dos eus passou a poder dominar não só a natureza, pela ciência, como a própria sociedade, através de uma ideia prévia, pela mística do conceito criador.
Logo, cada um dos eus passou a poder levar a cabo uma dominação universal do real através de uma técnica. Passou a poder controlar-se o mundo pela ciência e a sociedade por um Estado totalitário.
Cada um dos eus passou a poder transformar o ser em vir a ser em devir em processo histórico, em movimento, em marcha racional e necessária, a caminho de um fim
De facto, este humanismo laico gerou um jusracionalismo que considerou o Estado como um espaço de razão, com extensão e movimento. Na extensão, haveria uma geometria (o território) e uma aritmética (a população). O movimento, ou a série de combinações entre esses dois elementos, desencadear-se-ia pela dinâmica do conceito de soberania, a qual era entendida como um poder absoluto e perpétuo que pairaria acima deles.
E o mundo, em vez de ser concebido como uma espécie de ser animado, passou a ser visto como uma simples máquina decomponível pela mecânica.
Uma soberania que deveria caber a um só homem, a um déspota que servisse de receptáculo às luzes da razão, um ponto que pudesse ser educado pela filosofia das luzes
Segundo as teses de Max Weber, o Estado Moderno terá surgido quando a legitimidade tradicional foi substituída pela legitimidade racional, quando a formas de consentimento não racional se sucederam formas de consentimento racional.
Se, no Ancien Régime, a fonte do respeito e da obediência consentida era a fidelidade, eis que o Estado Moderno vai invocar a competência e os burocratas passam a substituir os fiéis.
Aliás, para Weber, a legitimidade tradicional, seja a do feudalismo, baseada na relação vassálica, seja a do patrimonialismo, baseada na relação de piedade entre um paterfamilias e os seus dependentes, sempre concebeu o espaço do político à maneira de uma casa.
A política (de polis) seria, assim, o mesmo que economia no sentido etimológico do termo. Isto é, oikos+nomos, a arte de dirigir a casa, com um chefe da casa (hausherr ) ou senhor (dominus) dotado de um poder global e amplo (económico, judicial e político) sobre os respectivos dependentes.
Nestes termos, o tradicionalismo terá gerado um rei paternalista e um reino concebido como uma família extensa ou como uma casa ou um ninho, ideia que vai permanecer durante todo o Ancien Régime, mesmo quando passou a defrontar-se com a visão moderna do absolutismo estadualista.
A modernidade, enquanto o contrário do tradicionalismo, balbuciar-se-ia ao ritmo da racionalidade, da legalidade, da estadualidade, da burocracia, e do próprio capitalismo.
O primeiro marco do Estado Moderno, segundo as teses weberianas, estará pois no surgimento da distinção entre o público e o privado e na consequente distinção entre um espaço doméstico e um espaço político, um espaço da sociedade e um espaço do Estado, distinção impossível de estabelecer no patrimonialismo, onde os negócios públicos sempre se confundiram com os negócios domésticos, nomeadamente pela confusão entre governo e casa do rei.
O espaço público não vai também admitir a existência de uma propriedade privada dos meios de violência militar nem a apropriação corporativa dos meios de administração, como era timbre do feudalismo.
Isto é, com o Estado Moderno vai assistir-se à publicização tanto da posse das armas como dos meios administrativos.
Weber identifica também o Estado Moderno com um Estado Racional. Isto é, considera que um Estado Moderno é constituído pelo facto de certas pessoas orientarem a sua actividade conforme a representação mental que fazem com que esse Estado seja ou deva ser assim.
Para Weber, o senhor legal típico, o "superior", enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta as suas disposições, pelo que quem obedece só o faz como membro da associação e só obedece "ao direito".
Daí que os membros da associação, ao obedecerem ao senhor, não o fazem à pessoa deste, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objectiva, racionalmente limitada, que lhe foi atribuída por essas ordens.
E, da racionalidade, deriva a legalidade ou a normatividade, dado que as ordens são dadas em nome da norma impessoal, e não em nome da autoridade pessoal; e mesmo a emissão de uma ordem constitui a obediência para com uma norma, e não uma liberdade, um favor ou privilégio arbitrários.
Segundo o mesmo Weber o Estado Moderno seria, acima de tudo, um Estado Racional marcado pelo surgimento de uma administração burocrática.
E isto porque em todos as áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa económica, grupo de interesses, união, fundação, etc.), o desenvolvimento das formas modernas de agrupamento identifica‑se muito simplesmente com o desenvolvimento e com a progressão constantes da administração burocrática: o nascimento desta é, por assim dizer, a célula germinativa do moderno Estado ocidental.
A burocracia racional é, pois, uma ditadura do funcionário. Apoia‑se na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a autoridade.
Tem uma impersonalidade formalista, consistindo numa dominação em virtude do conhecimento que destrói os antigos sistemas de legitimação. Assim, o saber e a ideologia passam a ser os principais pontos de apoio do Estado.
Uma burocracia também se tornou possível pelo aparecimento de uma economia monetarista que permitiu ao Estado passar a pagar com regularidade aos seus funcionários, abandonando-se o anterior pagamento em espécie, por exemplo, através do aluguer da função de cobrador de impostos.

Os elementos do Estado

Os elementos do Estado
De acordo com o paradigma das escolas de direito público dominantes em Portugal é tradicional, no âmbito da ciência do direito constitucional, a referência aos elementos e aos fins do Estado, no âmbito do prévio estabelecimento do conceito de Estado.
O Estado não passaria assim de um conjunto de certos elementos, como o povo, o território e o poder político, visando outros tantos fins, como a segurança, a justiça e o bem‑estar, onde cada um desses elementos e cada um desses fins são entendidos como simples produtos do pensamento, como meras abstracções, juridicamente disciplináveis e, como tal, enquadráveis no círculo concêntrico dos conceitos.
Acontece apenas que o Estado não cabe todo no laboratório jusconceitualista, dado se assumir como um ser complexo e estratiforme que, pela população e pelo território, tem os pés no mundo sensível, o tronco no mundo não sensível da cultura e a cabeça no mundo ideal dos fins e valores do espírito humano .
Segundo o paradigma dominante, o Estado tem, por um lado, um conjunto de elementos sensíveis, uma base material, dotada de uma certa organização o chamado corpo político e, por outro, um enquadramento supra-sensível, uma certa ideia de obra, um conjunto de fins.
A base material, o suporte da entidade estadual, é sempre um conjunto geo-humano, uma associação de pessoas assente num determinado espaço, isto é, a conjugação de um elemento societário, marcado por hábitos complementares de comunicação chame-se povo, comunidade ou nação , e de um elemento territorial chame-se terra, chão ou país.
A organização dada a essa base material corresponde ao chamado poder político, que se desdobra tanto no princípio do governo a existência de uns a mandar e outros a obedecer como no princípio da exclusividade o aparelho de poder tende sempre a evitar a existência de outros concorrentes dentro do mesmo conjunto geo-humano.
Só assim emerge um organismo político, levando a que um conjunto de pessoas adquiram comportamentos políticos e lealdades comuns, atingindo-se a possibilidade sistémica de fazer com que as várias subunidades cumpram as respectivas obrigações, integrando-se os vários subsistemas e permitindo-se o estabelecimento de processos de decisão, propiciadores de uma distribuição de valores.
Mas não basta a organização para que o conjunto se transforme num todo, exigindo-se uma ideia, capaz de lhe dar um fim, capaz de unir um povo, de espiritualizar uma determinada terra, de dar legitimidade ao poder e de constituir uma comunidade, marcada pela comunhão em torno de coisas que se amem.
Só assim é que o corpo político, depois de organizado, se transforma numa realidade abstracta, capaz de racionalizar o conjunto da vida social, incorporando a força numa instituição, conciliando a liberdade e poder e transformando a razão de Estado num Estado-Razão.
A esse fim supremo pode dar-se o nome de racionalidade, que, no entanto, se não reduz à racionalidade técnica do útil, dado impor uma racionalidade ética, a do viver honestamente, que exige a justiça, e a procura da boa sociedade.
Nestes termos, o Estado, como sublinha Cabral Moncada, surge-nos como um ser complexo e estratiforme com os pés no mundo sensível, na população e no território, o tronco no mundo não sensível da cultura e a cabeça no mundo ideal dos fins e valores do espírito humano.
De qualquer maneira, mesmo dentro do paradigma dominante, o Estado é sempre um conjunto do Estado-comunidade, ou república, e do Estado-aparelho de poder, ou principado e, mesmo no tocante ao aparelho de poder, não se reduz ao governo e à administração pública, directa ou indirecta, abrangendo todos os chamados órgãos de soberania, os restantes serviços públicos, centrais, regionais, locais, bem como as próprias pessoas colectivas por ele conformadas.
A este respeito, importa salientar que Jean Bodin apelava para a distinção entre aquilo que ele considerava como a république de outra coisa a que dava o nome de l'estat. Com efeito, há uma distinção a fazer entre a comunidade política, o Estado em sentido amplo, a chamada sede da soberania e a forma de governo, a maneira de se exercer o poder, para aquilo que Adriano Moreira refere como a estrutura que monopoliza a força suprema dentro da comunidade e que pode não coincidir com aquilo que legalmente recebe esse nome.
Outras teses, menos presas ao soberanismo, salientam que qualquer sociedade política é sempre um conjunto de sociedades, um mosaico ou um complexo de grupos, cuja dinâmica, através de uma série de constelações que se fazem e desfazem, gera uma pluralidade de centros de decisão, apenas unificados por uma estrutura de rede (network structure). Assim, de acordo com estas teses pluralistas, o Estado é perspectivado, não como uma coisa, mas como um processo relacional, entre a sociedade civil, ou comunidade, e o aparelho de poder, como o mero quadro estrutural de um jogo entre forças centrífugas e centrípetas, que constituiriam uma rede de micropoderes, locais, regionais, familiares, económicos e culturais, toda uma miríade de poderes periféricos, não necessariamente hierarquizáveis como corpos intermediários, que se justaporiam, de forma complexa, pelo que a soberania, na prática, seria divisível e, sobre o mesmo espaço e as mesmas pessoas, não teria que haver o centralismo e o concentracionarismo de uma única governação.
O Estado é, deste modo, perspectivado como um sistema aberto, como um macrocosmos de macrocosmos sociais, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e com os vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas (input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses. Porque o Estado é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensõe da sociedade.
Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e ao lado do Estado, pelo que seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano.
Por outras palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das nações, duma força unidade e da decisão da vontade comum, fundamentada em leis, como diria Kant.
Neste sentido, podemos dizer, na senda de de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização.
De qualquer maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da vontade do homem. O poder supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores, prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade, para utilizarmos palavras de João Paulo II, não deixa de salientar que uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.

A biografia do Estado

A biografia do Estado
O Estado Moderno e Nacional, dito soberano e independente, constitui simples produto de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos, situando-se assim numa certa encruzilhada com os seus antecedentes e os seus desenvolvimentos.
Se colocarmos como terminal do processo de construção do Estado a ideia weberiana de monopólio da força física legítima, não poderemos deixar de reconhecer que, mesmo nos estreitos limites da história europeia ocidental, tal poder de coacção nem sempre foi do centro político que nucleariza o Estado.
No próprio contexto dos oito séculos da nossa história também já o foi da vingança privada, do poder senhorial ( nobre ou eclesiástico) e do próprio poder municipal. Houve, com efeito, um longo processo de construção do Estado, através da centralização e concentração do poder, que culminou no chamado Estado Absoluto.
Isto é, o Estado é primacialmente o Estado como Justiça, ou o Estado Justiceiro, a justiça do rei, principalmente a justiça penal, a lutar contra a vingança privada e outras formas não públicas de reacção ao ilícito penal; o rei a nomear juizes para todo o reino, dos chamados juizes de fora aos corregedores; e a determinar que quando alguém se sentisse ofendido pedisse protecção ao centro, clamando aqui d'el rei.
Mas a construção de um centro político, através de um centripetação contra as periferias, passou também pelo lançamento dos impostos gerais e permanentes. E aqui, podemos dizer, como Maurice Duverger, que a história da democracia é a história do imposto.
Primeiro, porque a ideia de imposto geral determinou que se eliminassem as isenções e imunidades com que se privilegiavam determinados estamentos.
Segundo, porque o lançamento do imposto implicou a institucionalização de um mecanismo ou de um aparelho que propiciasse o consentimento do braço popular, dando origem aos parlamentos ou cortes.
Terceiro, porque os reis tiveram de estabelecer uma central recebedora de receitas públicas, circunstância que só foi possível quando se desenvolveu uma máquina exactora constituída por uma burocracia que deixou de ser paga por emolumentos, em espécie, e passou a receber vencimentos regulares, dentro de um direito à carreira.
Para rematar o centro, surge o Estado como Legislador, com a lei geral e abstracta a lutar contra a pluralidade dos costumes, a autonomia da doutrina e a resistência jurisprudencial.
É todo um processo de crescente predomínio da lei como fonte de direito, ao mesmo tempo que surgem os vários direitos estatais, distintos do direito romano e do direito canónico, que constituíam o direito comum europeu.
Um processo que se teve o seu momento alto com o absolutismo, não deixou de ser dinamizado pelo demoliberalismo quando a lei passou a ser uma manifestação da volonté générale
Depois das grandes Revoluções Atlânticas, da Revolução Inglesa à Revolução Americana, da Revolução Francesa ao movimento de independências da América Central e do Sul, passando pela primavera dos povos de 1848, eis que esse produto do racionalismo iluminista tentou também ganhar asas emotivas, com o romantismo, e conformar-se como Estado nação. Emerge então o chamado princípio das nacionalidades, segundo o qual, a entidade cultural, étnica, voluntarista ou histórica da nação deveria poder autodeterminar-se, constituindo-se em Estado.
Contudo, na esmagadora maioria dos casos, verificou-se que, em vez do movimento da nação para o Estado, se deu o preciso inverso da estatização, quando o Estado, decretando ser nação politicamente organizada, tratou de construir uma nação, instrumentalizando o nacionalismo, principalmente através dos subsistemas do serviço militar obrigatório e do ensino público.
Foi este modelo ocidental de organização do político que se mundializou unidimensionalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na sequência da chamada descolonização, posterior à Conferência de Bandung, gerando-se assim aquele Estado a que chegámos, com uma dimensão quase universal, dado que, hoje, existem cerca de duas centenas de unidades políticas que, como tal, se qualificam.
No campo europeu e ocidental, importa salientar também que, depois da questão social, da segunda metade do século XIX, o instinto de crescimento do poder da criatura estadual, aliada à circunstância da mesma se conceber como cérebro social ou como órgão do pensamento social, provocou a degenerescência das estatolatrias, com uma sucessão de autoritarismos, terrorismos e totalitarismos, expressas nas variadas formas do Estado ideológico, do Estado ético e do Estado de segurança nacional.
Mas, mesmo na forma moderada de Estado de Bem-Estar, ou de Estado-Providência, com intervencionismo nos domínios do económico e do social, a mesma entidade não deixou de se transformar num Estado de Mal Estar, quando se assumiu como Estado Empresário, Estado Planeador e Estado Gestor.
No contexto global da Europa, foi há pouco mais de um século, com a emergência da chamada questão social, que o débil aparelho de poder do Estado Liberalista foi obrigado a intervir numa área que até então era considerada como uma esfera não estadual, não pública ou não política, área que se decretava como reservada para a zona do social e do privado, onde apenas se desenrolariam os puros conflitos de interesses entre pessoas privadas.
Foi a partir de então que começou a emergir o chamado Estado Providência que levou o velho Estado Liberalista a deixar de ser um simples árbitro da chamada sociedade.
Foi então que se começou a passar do chamado Estado Abstencionista para o Estado Interventor
Até então ainda tínhamos o velho Estado Polícia apenas preocupado em garantir a segurança interna e externa de uma determinada comunidade política.
Era um Estado, acima de tudo, defensivo, que protegia e garantia a ordem pública, organizando a segurança interna pela polícia, pela administração judiciária e notarial e pelos impostos, e salvaguardando a segurança externa, pelas forças armadas.
Era este velho Estado Liberalista, uma espécie de cão de guarda da propriedade, alimentado a impostos, que vivia as delícias minimalistas do ne pas trop gouverner e que recolhia as vantagens de um certo free trade no plano da internacionalização económica.
Bastava-lhe, no plano da estruturação, estabelecer algumas regras do jogo político, económico e social e, quando muito, arbitrar a competição, a struggle for life entre as várias forças vivas.
Tal tipo de Estado, satisfeito em ter instaurado a igualdade da lei e em ter avançado com os Códigos Civis e com as Constituições, no domínio da igualdade de todos perante a lei, não se preocupava em estabelecer a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei.
Era, com efeito, um modelo de organização que não se preocupava com a Justiça e que apenas visionava a política como mera relação directa entre o indivíduo e o soberano, como dicotomia entre os governados e os governantes.
Nessa senda, os teóricos oficiais e oficiosos de tais regimes, marcados pelo utilitarismo e pelo positivismo, consideravam que não valia a pena a pesquisa sobre o fundamento racional da justiça, nem, muito menos, a respectiva teorização, considerando tal preocupação como mera questão metafísica e, consequentemente, metapolítica.
Acreditando na máxima de que as virtudes públicas seriam atingíveis pela via dos vícios privados, consideravam que o mero altruísmo intersubjectivo bastaria e que a chamada justiça não passaria de um simples instinto sem dignidade para se constituir em princípio social e, muito menos, no fundamento do Estado.
Um dos autores dessas correntes de pensamento chegou mesmo a proclamar que a justiça é uma noção mais ou menos vaga que os homens formam numa determinada época e num determinado grupo, uma noção que é infinitamente variável e está sempre a mudar, pelo que bastaria o mero sentimento do justo, esse sim um elemento permanente da natureza humana.
Não tarda até que um Nietzsche venha reduzir o altruísmo a uma simples virtude das chamadas raças inferiores, porque nas raças superiores, nos superhomens, o que dominaria era a Wille zur Macht de seres egotistas e amoralistas.
Bastaria pois que os homens procurassem os seus próprios bens individuais, dado que, por acréscimo, viria o bem geral, a utilitarista maior felicidade para o maior número (the greatest happiness to the greatest number), que seria a única medida do direito e do torto (is the mesure of wright and wrong).
Aliás, para estas correntes naturalistas, o homem não passaria de um mero animal razoável e calculista, sempre à procura do máximo de vantagens com um mínimo de esforços, onde a justiça não passaria da sofista conveniência dos mais fortes e o direito de um mínimo de moral, coactivamente estabelecido.
Eram estas as normas fundamentais do liberalismo utilitarista e do individualismo possessivo, marcados pelas heranças de Thomas Hobbes e de Jeremy Bentham, num misto de estadualismo e de individualismo, contente com a luta de todos contra todos do homem lobo do homem, que marcou o ritmo das concepções do homem de sucesso.
Um modelo que só aqui e além era temperado pelo liberalismo ético de um Adam Smith, que fazia apelo ao chamado princípio da simpatia, ao facto de qualquer homem ter necessidade de amar e ser amado e de, por isso mesmo, procurar ser amável.
Mas mesmo este liberalismo ético não deixava de adoptar uma visão restrita da justiça, reduzindo-a à paz e ao impostos leves, a fim de que o Estado pudesse proteger tanto quanto possível todos os membros da nação contra ataques, mesmo legais, de todos os outros, ou seja, manter uma legislação imparcial.
Todos sabemos como este equilíbrio teórico foi desfeito a partir de meados do século XIX, quando a ordem liberalista foi alvo de duas fortes contestações teóricas, provindas quer do socialismo quer da doutrina social da Igreja Católica.
Basta recordar que no ano de 1848 não só se edita o Manifesto Comunista, como também surge pela primeira vez a expressão democracia cristã, ao mesmo tempo que se começava a programar a necessidade de um Estado Social.
Mas é preciso esperar pela depressão da década e setenta do século passado para que os aparelhos de poder se transformem e que os mandamentos do free trade utilitarista entrem em decomposição.
E foi na França de Napoleão III e na Alemanha de Bismarck que começou a ganhar forma aquilo que os franceses vão qualificar como État Providence e que os alemães vão designar por Wohlfahrstaat.
Um tentando assumir-se como o superintendente da previdência social e tutor dos infelizes e dos que não têm quem os defenda, para utilizarmos as palavras de Jules Ferry. Outro, mais marcado pelo chamado socialismo catedrático, assumindo-se como um Sozial Staat que procurava executar uma sozial politik.
Deixa então de existir uma clara separação entre o chamado Estado e a chamada Sociedade, incluindo a economia, dado que a esfera social se vai repolitizar.
O velho dualismo entre a verticalidade de um Estado, entendido como a irresistível puissance dominatrice e a horizontalidade de uma Sociedade Civil, suposta como entidade desprovida de poder político, que havia sido instaurado pelo absolutismo, com a emergência de um soberano superior à sociedade, e que o demoliberalismo primitivo continuou, substituindo, embora o monarca absoluto pelo povo absoluto, entrou em regime de curto-circuito.
O novo modelo de Estado era assim obrigado a recuperar os clássicos fins o político e, para além da mera segurança, trata de procurar realizar a justiça e o bem -estar.
Se, numa primeira fase, apenas nos surge um Estado Coordenador, não tarda que este caia na tentação do Estado Gestor e nas intendências merceeiras do Estado Empresário, enquanto, paralelamente se desliza da mera planificação indicativa para o concentracionarismo da planificação imperativa.
Chega-se mesmo ao cúmulo de uma espécie de Estado Sábio, concebido como cérebro social, como órgão do pensamento social, ao mesmo tempo que se tem a ilusão de uma espécie de Estado Ético, que se pretendia definidor do bem e do mal, com uma estadual política do espírito, com novas inquisições e novas juntas censórias. Entra-se assim num crescendo de degenerescência estatolátrica, entre o autoritarismo e o totalitarismo, que vai fazer acrescer ao tradicional terrorismo de Estado um mais patológico terrorismo da razão.
Não se pense contudo que o modelo de intervencionismo moderado se propagou imediatamente a todas as comunidades políticas ocidentais. Nalguns casos, os modelos livre cambistas só entram em decomposição quando sofreram os efeitos da Grande Depressão de 1929, como aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir do New Deal de Roosevelt.
Também entre nós, só com a emergência do salazarismo é que se vão conjugar algumas das reformas que, meio século antes, se haviam instaurado em França e na Alemanha.
Na verdade, o Estado Providência em português chamou-se sobretudo Estado Novo, dado que só com o salazarismo é que passou a praticar-se uma efectiva política social que superou a fase da casuística caridadezinha social.
Só a partir do salazarismo, quando se conciliou o catolicismo social da escola de Le Play, com o socialismo catedrático, é que se criou, pela primeira vez, um efectivo sistema de segurança social, bem como um modelo global de protecção laboral e de previdência social.
Aliás, só depois da Segunda Guerra Mundial, por influxo do keynesianismo e das novas práticas da social-democracia e da democracia-cristã, os dois principais contestadores da anterior ordem liberalista que, então, se assumiram como os principais gestores do novo sistema, só a partir de então é que, na Europa Ocidental, o Estado de Providência e o Welfare State se tornam dominantes, em torno do tópico da economia social de mercado.
A partir de então, as democracias ocidentais assistiram a um gigantesco crescimento do aparelho de poder estadual chamado a intervir na economia, na educação, na segurança social, no emprego e nos serviços de saúde e, durante algumas décadas, esse crescimento até se foi conjugando com a estabilidade e com o próprio desenvolvimento.
Contudo, nestas duas últimas décadas, aquilo que era um Estado de Bem Estar volveu-se por todo o lado num Estado de Mal Estar. É que, se as reivindicações pessoais e grupais foram, pouco a pouco, exigindo um maior intervencionismo do aparelho de poder estadual, eis que o aumento quantitativo da respectiva área de actividade alimentada pelo imposto, se tornou num instrumento pesado que passou a ser visto como o principal impecilho das citadas reivindicações.
E quanto mais o aparelho de poder foi crescendo, mais a inércia o foi cercando, pelo que começaram a surgir novas reivindicações como a do menos Estado, mais sociedade, falando-se na necessidade de crescentes privatizações e desregulamentações, no âmbito da proclamada libertação da sociedade civil.
Com efeito, passou a reconhecer-se que o novo modelo de Estado sofria de raquitismo. Que criou estruturas adiposas de gordura sem adequado músculo e calcificada ossatura, o que teria posto em causa as articulações e a própria estrutura óssea do corpo social.
Contudo, ao mesmo tempo que se falava em menos Estado relativamente aos intervencionismos anteriores, eis que logo se clamava por um melhor Estado, isto é, por uma nova intervenção da esfera pública em domínios como os da qualidade de vida, do ambiente, do regionalismo e da descentralização visando responder às novas questões sociais.
Mais uma vez, eis que, entre nós, a história continuava a ser marcada por outros ritmos. O velho Estado Novo salazarista, que aplicara ao Portugal dos anos trinta e quarenta, algumas das reformas bismarckianas, e que não conseguira adaptar-se às mudanças dos anos setenta com a tentativa de Estado Social de Marcello Caetano, que, no fundo, tentava instaurar entre nós, os modelos de economia social de mercado do imediato pós-guerra, vai ser abalado pelo processo revolucionário.
Assim, em 1974-1975, eis que, ao mesmo tempo que se levam ao clímax as sementes da sociedade de consumo, herdadas do marcelismo do tempo das vacas gordas, vai fazer acrescer-se ao estatismo salazarista o colectivismo gonçalvista.
O socialismo revolucionário teve aliás como aliciante uma espécie de socialismo de consumo, marcado pelo slogan dos ricos que paguem a crise, utilizando sobretudo as cenouras do salário mínimo e do emprego artificial que vão servir de alibi para o chicote das nacionalizações e das ocupações.
Depois, a social-democracia pós-revolucionária, democrática e pluralista, a dos governos PS e PSD, apenas pôde reformar no contexto das conquistas da revolução, consagradas pela Constituição e pela lei ordinária.
Surgiu assim um Welfare State à portuguesa, produto de um activismo, a Revolução, e de duas inércias, o que estava antes de 1974 e o oportunismo pós-revolucionário, que desencadeou o neocorporativismo dos gestores do sistema, sempre de acordo com os sucessivos situacionismos, os quais cederam a uma ideologia tecnocrática assente numa espécie de oportunismo prático, marcado pelos anacronismos utilitaristas do homem de sucesso e por uma sonora mas vaga invocação da modernização, esse travesti que, invocando algumas pistas da requentada tese do fim das ideologias, acabou por tentar fazer o impossível de tornar doméstico o que sempre foi público e de mercantilizar o que deve ser político.
No fundo, uma espécie de liberalismo a retalho que se guardou na pipa daqueles socialismos cesaristas que sempre agravaram o nosso ancestral capitalismo de Estado.
É que só pode haver melhor Estado e mais sociedade quando se abandonar o dualismo Estado-Sociedade, pelo regresso à política e o regresso à justiça.
O Estado a que chegámos produto destas contradições, não é apenas marcado pelo crescimento quantitativo do respectivo aparelho de poder, mas também por uma alteração qualitativa dos respectivos processos, provocada sobretudo pela repolitização da esfera social que, conforme salienta Jürgen Habermas, escapa à distinção entre 'público' e 'privado', ao mesmo tempo que o próprio sistema jurídico privado teve de receber um crescente número de contratos entre o poder público e pessoas privadas.
Há, portanto, que ultrapassar as classificações formais e que detectar tentações de estatolatria em todos os modelos organizacionais do poder político.
Para utilizarmos as palavras de Bertrand de Jouvenel, eis que o Estado e o Indivíduo não estão sozinhos na Sociedade, existindo outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços e como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos.
O Estado a que chegámos, com efeito, passou a ter uma actuação global face à sociedade, não se limitando a intervir em aspectos parcelares da mesma, dado que procurou garantir a integração existencial (Daseinsvorsorge), assegurando as condições vitais da existência de que o homem carece, para utilizarmos palavras de Ernst Forsthof.
Por outro lado, surgiu uma radical alteração das formas de representação política, com a emergência de novas formas de corporativismo, com esse sistema particular de representação dos interesses que se opõe ao pluralismo e ao sindicalismo, com esse sistema de representação dos interesses no quadro do qual os actores são organizados num número limitado de categorias funcionais, obrigatórias, disciplinadas, hierarquizadas e ao abrigo de qualquer concorrência; elas são reconhecidas e admitidas (senão criadas) pelo Estado e beneficiam dum monopólio de representação na medida em que eles conseguem como contrapartida em controlar a selecção dos seus dirigentes o tipo de procuras que se exprimem e o apoio que recebem.
O Estado Moderno, quando abandonou o jacobinismo individualista, viu‑se privado de algumas tradicionais atribuições, tanto em proveito dos trusts e cartéis dos patrões capitalistas, como dos sindicatos dos operários e restantes trabalhadores por conta de outrem, para além das ordens profissionais das chamadas profissões liberais.
Acontece, inclusive, que algumas formas de poder local, desde as regiões aos municípios, que, teoricamente, são uma forma de manifestação do Estado, passaram a considerar‑se como poderes autónomos que apenas gravitam em torno de um poder central, assumindo‑se de forma sindicalista como uma espécie de contrapoder.
O Estado a que chegámos gerou o crescimento de uma burocracia, por vezes já não burocrática, que levou ao aparecimento de uma espécie de Estado dentro do Estado, dado que se a sociedade já não é autónoma, se já não se mantém auto‑regulando‑se como uma esfera que precede e subjaz o Estado, então, o Estado e a sociedade já não conseguem manter a anterior relação fixada segundo o modelo da base e da super‑estrutura.
Surgiu assim um Estado que é neocorporativo a nível da sociedade e que é um Estado de partidos a nível da participação no poder político, um Estado em tempo de poliarquia.
A questão fundamental do Estado a que chegámos, deste Estado que pretendendo ser de Bem-Estar acabou por se tornar de Mal Estar, está no facto de apenas continuar a ginasticar o respectivo corpo sem se preocupar com a procura de um espírito são.
Julgo que a respectiva reforma só pode ser levada a cabo quando se retomarem as teorias fundamentais da polis como entidade que tem a justiça como estrela polar.
Como já salientava Aristóteles, só pode haver política quando os homens compartilharem em comum o sentido da justiça, porque a justiça é coisa da polis, é o princípio de ordem de uma comunidade política.
Só quando retomarmos a justiça como o fim da política, como o bem político por excelência, só quando a voltarmos a considerar como a primeira virtude das instituições sociais é que podemos vencer este mal-estar prático e teórico, em cuja encruzilhada nos encontramos.
Porque, como proclama John Rawls, a Justiça está para a política, assim como a verdade está para o pensamento.