15.3.07

O Estado a que chegámos II

No campo europeu e ocidental, importa salientar também que, depois da questão social, da segunda metade do século XIX, o instinto de crescimento do poder da criatura estadual, aliada à circunstância da mesma se conceber como cérebro social ou como órgão do pensamento social, provocou a degenerescência das estatolatrias, com uma sucessão de autoritarismos, terrorismos e totalitarismos, expressas nas variadas formas do Estado ideológico, do Estado ético e do Estado de segurança nacional.

Mas, mesmo na forma moderada de Estado de Bem-Estar, ou de Estado-Providência, com intervencionismo nos domínios do económico e do social, a mesma entidade transformou-se num Estado de Mal Estar, quando se assumiu como Estado-Empresário, Estado-Planeador e Estado-Gestor .

No contexto global da Europa, foi há pouco mais de um século, com a emergência da chamada questão social, que o débil aparelho de poder do Estado Liberalista foi obrigado a intervir numa área que, até então, era considerada como uma esfera não estadual, não pública ou não política, área que se decretava como reservada para a zona do social e do privado, onde apenas se desenrolariam os puros conflitos de interesses entre pessoas privadas.

Foi a partir de então que emergiu o chamado Estado-Providência que levou o velho Estado Liberalista a deixar de ser um simples árbitro da chamada sociedade, transitando-se do chamado Estado Abstencionista para o Estado Intervencionista.

Até então ainda tínhamos o velho État-Gendarme do laissez-faire, laissez-aller, le monde va de lui même, apenas preocupado em garantir a segurança interna e externa de uma determinada comunidade política.

Era um Estado, acima de tudo, defensivo, que protegia e garantia a ordem pública, organizando a segurança interna pela polícia, pela administração judiciária e notarial e pelos impostos, e salvaguardando a segurança externa, pelas forças armadas.

Esse velho modelo liberalista que se visionava com uma espécie de cão de guarda da propriedade, alimentado a impostos, vivendo as delícias minimalistas do ne pas trop gouverner e recolhendo as vantagens de um certo free trade no plano da internacionalização económica.
Bastava-lhe, no plano da organização, estabelecer algumas regras do jogo político, económico e social e, quando muito, arbitrar a competição, a struggle for life entre as várias forças vivas.
Tal tipo de Estado, satisfeito em ter instaurado a igualdade da lei e em ter avançado com os Códigos Civis e com as Constituições, no domínio da igualdade de todos perante a lei, não tentando estabelecer a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei.

Era, com efeito, um modelo de organização que não se preocupava com a justiça e que apenas visionava a política como mera relação directa entre o indivíduo e o soberano, como dicotomia entre os governados e os governantes.

Nessa senda, os teóricos oficiais e oficiosos de tais regimes, marcados pelo utilitarismo e pelo positivismo, consideravam que não valia a pena a pesquisa sobre o fundamento racional da justiça, nem, muito menos, a respectiva teorização, considerando tal preocupação como mera questão metafísica e, consequentemente, metapolítica. Acreditando na máxima de que as virtudes públicas seriam atingíveis pela via dos vícios privados, consideravam que o mero altruísmo intersubjectivo bastaria e que a chamada justiça não seria mais do que um simples instinto sem dignidade para se constituir em princípio social e, muito menos, no fundamento do Estado.

Um dos autores dessas correntes de pensamento proclamou mesmo que a justiça é uma noção mais ou menos vaga que os homens formam numa determinada época e num determinado grupo, uma noção que é infinitamente variável e está sempre a mudar, pelo que bastaria o mero sentimento do justo, esse sim um elemento permanente da natureza humana.

Não tarda até que um Nietzsche reduza o altruísmo a uma simples virtude das chamadas raças inferiores, porque nas raças superiores, nos superhomens, o que dominaria era o Wille zur Macht de seres egotistas e amoralistas.

Bastaria pois que os homens procurassem os seus próprios bens individuais, dado que, por acréscimo, viria o bem geral, a utilitarista maior felicidade para o maior número (the greatest happiness to the greatest number), que seria a única medida do direito e do torto (is the mesure of wright and wrong).

Aliás, para estas correntes naturalistas, o homem não seria mais do que um mero animal razoável e calculista, sempre à procura do máximo de vantagens com um mínimo de esforços, onde a justiça não passaria da sofística conveniência dos mais fortes e o direito de um mínimo de moral, coactivamente estabelecido.

Eram estas as normas fundamentais do liberalismo utilitarista e do individualismo possessivo, marcados pelas heranças de Thomas Hobbes e de Jeremy Bentham, num misto de estadualismo e de individualismo, contente com a luta de todos contra todos do homem lobo do homem, que marcou o ritmo das concepções do homem de sucesso.

Um modelo que só aqui e além era temperado pelo liberalismo ético de um Adam Smith, que fazia apelo ao chamado princípio da simpatia, ao facto de qualquer homem ter necessidade de amar e ser amado e de, por isso mesmo, procurar ser amável.

Mas, mesmo este liberalismo ético, não deixava de adoptar uma visão restrita da justiça, reduzindo-a à paz e aos impostos leves, para que o Estado pudesse proteger tanto quanto possível todos os membros da nação contra ataques, mesmo legais, de todos os outros, ou seja, manter uma legislação imparcial.

Todos sabemos como este equilíbrio teórico se desfez a partir de meados do século XIX, quando a ordem liberalista foi alvo de duas fortes contestações teóricas, provindas quer do socialismo quer da doutrina social da Igreja Católica.

Basta recordar que, no ano de 1848, não só se edita o Manifesto Comunista, como também surge, pela primeira vez, a expressão democracia cristã, ao mesmo tempo que se programava a necessidade de um Estado Social.

Mas é preciso esperar pela depressão da década de setenta do século passado para que os aparelhos de poder se transformem e que os mandamentos do free trade utilitarista entrem em decomposição.

E foi na França de Napoleão III e na Alemanha de Bismarck que ganhou forma aquilo que os franceses qualificam como État Providence e que os alemães designam por Wohlfahrstaat.
Um tentando transformar o aparelho de poder no superintendente da previdência social e tutor dos infelizes e dos que não têm quem os defenda, para utilizarmos as palavras de Jules Ferry. Outro, mais marcado pelo chamado socialismo catedrático, assumindo-se como um Sozial Staat que procurava executar uma sozial politik.

Deixa então de existir uma clara separação entre o chamado Estado e a chamada Sociedade, incluindo a economia, dado que a esfera social se repolitiza segundo Habermas. É toda a sucessão do aparelho de poder na luta contra o pauperismo, em nome da solidariedade e do mutualismo, gerando-se o Estado que se assume como higienista, como grande cofre dos seguros sociais, como o empregador das grandes obras públicas, como o gestor da segurança social e até como o planeador, quando, com o Estado keynesiano, se passa do mestre-escola que ensinava os indivíduos a ler, escrever e contar, ao pretenso grande educador dos agentes económicos.
Vai assim superar-se o velho dualismo entre a verticalidade de um Estado, entendido como a irresistível puissance dominatrice e a horizontalidade de uma sociedade civil, suposta como entidade desprovida de poder político, que fôra instaurado pelo absolutismo, com a emergência de um soberano superior à sociedade, e que o demoliberalismo primitivo continuou, substituindo o monarca absoluto pelo povo absoluto, entrou em regime de curto-circuito.

O novo modelo de Estado era, deste modo, obrigado a recuperar os clássicos fins do político e, para além da mera segurança, procurava realizar a justiça e o bem -estar.

Se, numa primeira fase, apenas nos surge um Estado Coordenador, não tarda que este caia na tentação do Estado Gestor e nas intendências merceeiras do Estado Empresário, enquanto, paralelamente, se desliza da mera planificação indicativa para o concentracionarismo da planificação imperativa.

Chega-se mesmo ao cúmulo de uma espécie de Estado Sábio, concebido como cérebro social, como órgão do pensamento social, ao mesmo tempo que se tem a ilusão de uma espécie de Estado Ético, que se pretendia definidor do bem e do mal, com uma estadual política do espírito, com novas inquisições e novas juntas censórias. Entra-se assim num crescendo de degenerescência estatolátrica, entre o autoritarismo e o totalitarismo, que faz acrescer, ao tradicional terrorismo de Estado, um mais patológico terrorismo da razão.

Contudo, o modelo de intervencionismo moderado não se propagou imediatamente a todas as comunidades políticas ocidentais. Nalguns casos, os modelos livre cambistas só entram em decomposição quando sofreram os efeitos da Grande Depressão de 1929, como aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir do New Deal de Roosevelt.

Também entre nós, só com a emergência do salazarismo é que se conjugam algumas das reformas que, meio século antes, se instauraram em França e na Alemanha.

Na verdade, o Estado Providência em português chamou-se sobretudo Estado Novo, dado que só com o salazarismo se praticou uma efectiva política social que superou a fase da casuística caridadezinha social.

Só a partir do salazarismo, quando se conciliou o catolicismo social da escola de Fréderic le Play, com o socialismo catedrático, se criou, pela primeira vez, um efectivo sistema de segurança social, bem como um modelo global de protecção laboral e de previdência social.

Aliás, só depois da Segunda Guerra Mundial, por influxo do keynesianismo e das novas práticas da social-democracia e da democracia-cristã, os dois principais contestadores da anterior ordem liberalista que, então, se assumiram como os principais gestores do novo sistema, na Europa Ocidental, o Estado de Providência e o Welfare State se tornam dominantes, em torno do tópico da economia social de mercado.

A partir de então, as democracias ocidentais assistiram a um gigantesco crescimento do aparelho de poder estadual chamado a intervir na economia, na educação, na segurança social, no emprego e nos serviços de saúde e, durante algumas décadas, esse crescimento até se foi conjugando com a estabilidade e com o próprio desenvolvimento.

Contudo, nestas duas últimas décadas, aquilo que era um Estado de Bem Estar volveu-se por todo o lado num Estado de Mal Estar. Se as reivindicações pessoais e grupais exigiram, pouco a pouco, um maior intervencionismo do aparelho de poder estadual, eis que o aumento quantitativo da respectiva área de actividade alimentada pelo imposto, se tornou num instrumento pesado que passou a ser visto como o principal impecilho das citadas reivindicações.
E quanto mais o aparelho de poder cresceu, mais a inércia o cercou, pelo que surgiram novas reivindicações como a de menos Estado, mais sociedade, falando-se na necessidade de crescentes privatizações e desregulamentações, no âmbito da proclamada libertação da sociedade civil.
Com efeito, reconheceu-se que o novo modelo de Estado sofria de raquitismo. Que criou estruturas adiposas de gordura sem adequado músculo e calcificada ossatura, o que poria em causa as articulações e a própria estrutura óssea do corpo social.

Contudo, ao mesmo tempo que se falava em menos Estado relativamente aos intervencionismos anteriores, eis que logo se clamava por um melhor Estado, isto é, por uma nova intervenção da esfera pública em domínios como os da qualidade de vida, do ambiente, do regionalismo e da descentralização, visando uma resposta às novas questões sociais.

Mais uma vez, eis que, entre nós, a história era marcada por outros ritmos. O velho Estado Novo salazarista, que aplicara, ao Portugal dos anos trinta e quarenta, algumas das reformas bismarckianas, não se adaptara às mudanças dos anos setenta com a tentativa de Estado Social de Marcello Caetano, que, no fundo, tentava instaurar entre nós, os modelos de economia social de mercado do imediato pós-guerra, é abalado pelo processo revolucionário.

Assim, em 1974-1975, eis que, ao mesmo tempo que se levam ao clímax as sementes da sociedade de consumo, herdadas do marcelismo do tempo das vacas gordas, se acresce, ao estatismo salazarista, o colectivismo gonçalvista.

O socialismo revolucionário teve aliás como aliciante uma espécie de socialismo de consumo, marcado pelo slogan dos ricos que paguem a crise, utilizando, sobretudo, as cenouras do salário mínimo e do emprego artificial, que servem de alibi para o chicote das nacionalizações e das ocupações.

Depois, a social-democracia pós-revolucionária, democrática e pluralista, a dos governos PS e PSD, apenas pôde reformar no contexto das conquistas da revolução, consagradas pela Constituição e pela lei ordinária.

Surgiu assim um Welfare State à portuguesa, produto de um activismo, a Revolução, e de duas inércias, o que estava antes de 1974 e o oportunismo pós-revolucionário, que desencadeou uma espécie de neocorporativismo dos gestores do sistema, sempre de acordo com os sucessivos situacionismos, os quais cederam a uma ideologia tecnocrática assente numa espécie de oportunismo prático, marcado pelos anacronismos utilitaristas do homem de sucesso e por uma sonora mas vaga invocação da modernização, esse travesti que, invocando algumas pistas da requentada tese do fim das ideologias, acabou por ensaiar o impossível de tornar doméstico o que sempre foi público e de mercantilizar o que deve ser político.

No fundo, uma espécie de liberalismo a retalho que se guardou na pipa daqueles socialismos cesaristas que sempre agravaram o nosso ancestral capitalismo de Estado.

É que só pode haver melhor Estado e mais sociedade quando se abandonar o dualismo Estado-Sociedade, pelo regresso à política e o regresso à justiça.

O Estado a que chegámos produto destas contradições, não é apenas marcado pelo crescimento quantitativo do aparelho de poder, mas também por uma alteração qualitativa dos respectivos processos, provocada sobretudo pela repolitização da esfera social que, conforme salienta Jürgen Habermas, escapa à distinção entre 'público' e 'privado', ao mesmo tempo que o próprio sistema jurídico privado teve de receber um crescente número de contratos entre o poder público e pessoas privadas.

Há, portanto, que ultrapassar as classificações formais e que detectar tentações de estatolatria em todos os modelos organizacionais do poder político.

Para utilizarmos as palavras de Bertrand de Jouvenel, eis que o Estado e o Indivíduo não estão sozinhos na Sociedade, existindo outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços e como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos.

O Estado a que chegámos, com efeito, tem uma actuação global face à sociedade, não se limitando a intervir em aspectos parcelares da mesma, dado que procurou garantir a integração existencial (Daseinsvorsorge), assegurando as condições vitais da existência de que o homem carece, para utilizarmos palavras de Ernst Forsthof.

Por outro lado, surgiu uma radical alteração das formas de representação política, com a emergência de novas formas de corporatismo, com esse sistema particular de representação dos interesses que se opõe ao pluralismo e ao sindicalismo, com esse sistema de representação dos interesses no quadro do qual os actores são organizados num número limitado de categorias funcionais, obrigatórias, disciplinadas, hierarquizadas e ao abrigo de qualquer concorrência; elas são reconhecidas e admitidas (senão criadas) pelo Estado e beneficiam dum monopólio de representação na medida em que eles conseguem como contrapartida em controlar a selecção dos seus dirigentes o tipo de procuras que se exprimem e o apoio que recebem.

O Estado Moderno, quando abandonou o jacobinismo individualista, viu-se privado de algumas tradicionais atribuições, tanto em proveito dos trusts e cartéis dos patrões capitalistas, como dos sindicatos dos operários e restantes trabalhadores por conta de outrem, para além das ordens profissionais das chamadas profissões liberais.

Acontece, inclusive, que algumas formas de poder local, desde as regiões aos municípios, que, teoricamente, são uma forma de manifestação do Estado, se consideram como poderes autónomos que apenas gravitam em torno de um poder central, assumindo-se de forma sindicalista como uma espécie de contrapoder.

O Estado a que chegámos gerou o crescimento de uma burocracia, por vezes já não burocrática, que levou ao aparecimento de uma espécie de Estado dentro do Estado, dado que se a sociedade já não é autónoma, se já não se mantém auto-regulando-se como uma esfera que precede e subjaz o Estado, então, o Estado e a sociedade já não conseguem manter a anterior relação fixada segundo o modelo da base e da super-estru­tura.

Surgiu assim um Estado que é neocorporativo a nível da sociedade e que é um Estado de partidos a nível da participação no poder político, um Estado em tempo de poliarquia.
A questão fundamental do Estado a que chegámos, deste Estado que pretendendo ser de Bem-Estar, se tornou de Mal-Estar, está no facto de apenas continuar a ginasticar o respectivo corpo sem se preocupar com a procura de um espírito são.

Julgo que a respectiva reforma só pode ser executada quando se retomarem as teorias fundamentais da polis como entidade que tem a justiça como estrela polar.

Como já salientava Aristóteles, só pode haver política quando os homens compartilharem em comum o sentido da justiça, porque a justiça é coisa da polis, é o princípio de ordem de uma comunidade política.

Só quando retomarmos a justiça como o fim da política, como o bem político por excelência, só quando a reconsiderarmos como a primeira virtude das instituições sociais podemos vencer este mal-estar prático e teórico, em cuja encruzilhada nos encontramos.

Porque, como proclama John Rawls, a Justiça está para a política, assim como a verdade está para o pensamento.

O Estado a que chegámos

O Estado a que chegámos
O Estado a que chegámos no plano da teoria é visto como uma comunidade que se governa plenamente a si mesma, dotada tanto de uma soberania interna como de uma soberania externa. Uma entidade dotada de três elementos: um povo, um território e um poder político. E com três fins: segurança, justiça e bem-estar.

Soberania interna
A soberania interna, ou supremacia, permite que o Estado, por um lado, defina as suas próprias fonteiras, estabeleça o respectivo âmbito de actuação territorial, e, por outro, defina a nacionalidade dos respectivos membros, estabelecendo o respectivo âmbito de aplicação pessoal.

Soberania externa
Já a soberania externa ou independência, implica quatro clássicos direitos: jus legationis, jus tractum, jus jurisdictionis e jus bellum

Depois das grandes Revoluções Atlânticas, da Revolução Inglesa à Revolução Americana, da Revolução Francesa ao movimento de independências das Américas Central e do Sul, passando pela primavera dos povos de 1848, eis que esse produto do racionalismo iluminista tentou também ganhar asas emotivas, com o romantismo, e conformar-se como Estado-nação. Emerge, então, o chamado princípio das nacionalidades, segundo o qual a entidade cultural, étnica, voluntarista ou histórica da nação deveria poder autodeterminar-se, constituindo-se em Estado.
Contudo, na esmagadora maioria dos casos, verificou-se que, em vez do movimento da nação para o Estado, se deu o preciso inverso da estatização, quando o Estado, decretando ser nação politicamente organizada, tratou de construir uma nação, instrumentalizando o nacionalismo, principalmente através dos subsistemas do serviço militar obrigatório e do ensino público.
Foi este modelo ocidental de organização do político que se mundializou unidimensionalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na sequência da chamada descolonização, posterior à Conferência de Bandung, de 1955, gerando-se assim aquele Estado a que chegámos, com uma dimensão quase universal, dado que, hoje, existem cerca de duas centenas de unidades políticas que, como tal, se qualificam.

O Estado como produto da história

O Estado como produto da história

O Estado Moderno e Nacional, dito soberano e independente, constitui simples produto de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos, situando-se assim numa certa encruzilhada, com os seus antecedentes e os seus desenvolvimentos.
O Estado a que chegámos no mundo ocidental e europeu da actualidade é, com efeito, produto de um longo prazo de muitos séculos, pelo que detectá-lo antes dos séculos XVIII e XIX só se conseguirá se adoptarmos uma atitude maximalista e uma dogmática retrospectiva que não tenha pejo em utilizar a mística do conceito criador do racionalismo construtivista.
Estamos a falar daquele fiat nominalista do soberanismo que fala no Estado como um espaço de razão, com uma determinada extensão — a geometria do território e a aritmética de uma população - e com um determinado movimento — a dinâmica entre a população e o território conseguida pela ideia de soberania, entendida como condição prévia da estadualidade, como um poder absoluto e perpétuo, tanto na relação de um Estado com outro Estado — a soberania externa —, como na relação do aparelho de poder, ou principado, com a comunidade, sociedade ou república que aquele soberaniza — a soberania interna.
De facto, esse paradigma estadual é mero segregado de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos. E se tem como antecedentes as teorizações cronologicamente renascentistas de Maquiavel (1469-1527) e de Bodin (1530-1596), vai precisar, como conditio sine qua non, dos desenvolvimentos tanto do sistema de Hobbes, que consagrou o absolutismo e o Estado Moderno, como das revoluções demoliberais, que instituíram o projecto de Estado-nação, sublimando-se com os mestres-pensadores da ideologia alemã, tanto a dos sucessivos hegelianismos, como a da juridicizante teoria geral de Estado.
Não há dúvida que tal paradigma estadual tem no Renascimento o seu fundamental ponto de partida, mas talvez não possa extrair-se desse tempo mais do que simples sementes de estadualidade. Porque se então existe uma atracção pelo querer público central, a caminhada institucional para a construção de um centro político majestático desdobra-se pelo Estado-justiça, pelo Estado-legislação, pelo Estado-imposto, pelo Estado-administração e pelo Estado-razão. Vai ser demorada, mas sem um movimento uniformemente acelerado, dado que há sinuosos avanços e alguns recuos, num evolucionismo que toca as raias da própria anaciclose.
Mas é a partir de então que, como assinala Martim de Albuquerque, surge o grande duelo do mundo moderno — a luta entre o Direito e a Política, entre a Justiça e a Conveniência, entre a Jurisprudência e Prudência. Duelo que, na nossa época, já pós-moderna, de depois da Segunda Guerra Mundial e do fim da Guerra Fria, se reforçou, aliás, graças àquela revolução globalista que os sinais dos tempos prenunciam, onde, à dispersão dos factos e à consequente multidão das opiniões, apenas correspondem, infelizmente, parcas teorizações, por vezes enevoadas pelo charlatanismo de pretensas profecias.
Os conceitos parecem bem mais conservadores que o movimento da vida. É que eles são obra de empíricos, de empíricos sistematizadores, mas empíricos, como dizia Eric Weil, dado que pensam num certo tempo e num certo espaço, pelo que estão sempre presos às teias de um tempo que passou e podem ser provenientes de espaços exóticos, assumindo-se, deste modo, como elementos estrangeiros, no sentido de estranhos ao ambiente e só passíveis de aplicação através de operações colonizadoras.



Do Estado Moderno ao Estado a que chegámos
Se colocarmos como terminal do processo de construção do Estado a ideia weberiana de monopólio da força física legítima, não deixaremos de reconhecer que, mesmo nos estreitos limites da história europeia ocidental, tal poder de coacção nem sempre foi do centro político que nucleariza o Estado.
No próprio contexto dos oito séculos da nossa história também já o foi da vingança privada, do poder senhorial (nobre ou eclesiástico) e do próprio poder municipal. Houve, com efeito, um longo processo de construção do Estado, através da centralização e concentração do poder, que culminou no chamado Estado Absoluto.



O Estado como Administração da Justiça.
Isto é, o Estado Moderno começou por ser o Estado como Justiça, ou o Estado Justiceiro, a justiça do rei, principalmente a justiça penal, a lutar contra a vingança privada e outras formas não públicas de reacção ao ilícito penal; o rei a nomear juízes para todo o reino, dos chamados juízes de fora aos corregedores; e a determinar que quando alguém se sentisse ofendido pedisse protecção ao centro, clamando aqui d'el rei.


O Estado como Finanças
Mas a construção de um centro político, através de um centripetação contra as periferias, passou também pelo lançamento dos impostos gerais e permanentes. E aqui, diremos, como Maurice Duverger, que a história da democracia é a história do imposto.
Primeiro, porque a ideia de imposto geral determinou que se eliminassem as isenções e imunidades com que se privilegiavam determinados estamentos.
Segundo, porque o lançamento do imposto implicou a institucionalização de um mecanismo ou de um aparelho que propiciasse o consentimento do braço popular, dando origem aos parlamentos ou cortes.
Terceiro, porque os reis estabeleceram uma central recebedora de receitas públicas, circunstância que só foi possível quando se desenvolveu uma máquina exactora constituída por uma burocracia que deixou de ser paga por emolumentos, em espécie, e passou a receber vencimentos regulares, dentro de um direito à carreira.



O Estado como Legislador
Para rematar o centro, surge o Estado como Legislador, com a lei geral e abstracta a lutar contra a pluralidade dos costumes, a autonomia da doutrina e a resistência jurisprudencial.
É todo um processo de crescente predomínio da lei como fonte de direito, ao mesmo tempo que surgem os vários direitos estatais, distintos do direito romano e do direito canónico, que constituíam o direito comum europeu. Uma espiral que, se teve o seu momento alto com o absolutismo, não deixou de ser dinamizado pelo demoliberalismo quando a lei se tornou uma manifestação da volonté générale

2.3.07

O Estado à procura do político

No princípio era a polis
A polis, na Grécia antiga, é o ponto de partida para uma forma hodierna que, grosso modo, corresponde àquilo a que damos o nome de Estado.
Uma entidade que, em Roma, tem como sucessora a civitas, donde emerge a res publica, e que, na Europa dos séculos XII e XIII, se transforma em regnum, para, a partir da Renascença, se volver progressivamente em Estado, essa palavra nova, inventada por Maquiavel.

Trata-se de uma linha evolutiva que, desde sempre, teve algumas formas paralelas, derivadas e até degeneradas. Na Grécia antiga, as várias cidades que invocavam uma origem comum assumiam-se como genos, como uma entidade marcada por uma certa comunidade étnica, origem remota daquilo que hoje qualificamos como nação. Em Roma, a partir do principado, a res publica é usurpada pelo Imperium, ponto de partida para aquela categoria que, na Idade Média, será qualificada como a monarquia universal, sobre a qual conformará o modelo soberanista e territorialista do absolutismo, esse que leva a que se hipostasie o centro político.
Na Idade Média, contudo, emergem também as cidades, comunas ou burgos que, em português, tiveram o nome de concelhos, desde os rurais aos urbano-mercantis, entidades que ora se assumem como entidades livres, carregadas de politicidade, ora se tornam elementos do reino, como repúblicas menores a caminho de uma república maior, mas demonstrando a hipótese de um corpo político infra-estadual. E no nosso tempo, eis que se volta à procura de um político supra-estadual, pela construção dos grandes espaços, uma espécie de patamar intermédio, visando a clássica ideia de república universal.






A parábola de Aristóteles
Comecemos pela imaginação dos fundadores da teoria política, sigamos a parábola de Aristóteles sobre a origem da polis, desse para quem a poesia até seria mais verdadeira do que a história. Porque vale a pena mergulharmos no tempo da imaginação, dos criadores e das parábolas.



Com efeito, segundo as metáforas de Aristóteles, o político não é nem o familiar, de cunho ainda naturalístico; nem o doméstico, marca económica; nem o étnico, a origem do modelo nacionalista; nem sequer a perspectiva dos que sobrevalorizam a união comercial de vários povos.


Aristóteles fala na polis como uma agregação de aldeias, onde a aldeia era um conjunto de casas e a casa, uma família extensa, assente no gregário animal das relações homem — mulher e homem — mulher — filhos.

Fase naturalística
Primeiro, assinala a existência de uma fase naturalística ou animalesca, marcada pela lógica do rebanho e pelos princípios contraditórios do prazer e da dor. Trata-se da relação entre o homem e a mulher, visando a conservação da espécie, a que se segue a relação dos pais com os filhos, tendo em vista a sobrevivência e a educação destes.

Fase social
Segue-se a fase social, da racionalidade técnica, quando se institucionaliza a casa (oikos). Uma comunidade complexa, abarcando três tipos de relações: primeiro, a relação do homem e da mulher, para a conservação da espécie; segundo, a relação dos pais com os filhos, tendo em vista a sobrevivência e a educação destes; terceiro, a relação do chefe da casa, enquanto unidade económica, com os respectivos dependentes.
Nesta fase, já marcada pela cultura, por aquilo que o homem acrescenta ao naturalístico, entramos na fase do social, do homem como ser diverso dos restantes animais, porque é um animal comunicacional, que através do discurso (logos) é capaz de expressar o útil e o inútil e não apenas o prazer e a dor, como sucede aos restantes animais. Assim,a comunidade económica é a primeira etapa da racionalidade, embora ainda da mera racionalidade técnica.

Polis
Só numa terceira fase, quando várias casas se juntam numa aldeia e várias aldeias se congregam numa polis é que se atinge a fase da racionalidade ética, do zoon politikon, onde a procura do bonum honestum, da justiça, supera o mero bonum utile do animal social. E o homem inventou o político para deixar de ter um dono, para deixar de obedecer a outro homem e passar a obedecer a uma abstracção.


O conceito de casa engloba, portanto, tanto o de comunidade familiar propriamente dita, a associação entre marido e mulher e entre o pai e os filhos, como o de comunidade económica, onde Aristóteles incluía a relação entre o senhor, ou o dono, e o escravo. Segundo as suas próprias palavras, a primeira união necessária é a de dois seres que são incapazes de existir um sem o outro: é o caso daquela que se estabelece entre o macho e a fêmea tendo em vista a procriação (...) uma tendência natural para se deixar, depois de si, um ser semelhante a si. A segunda é a união daquela cuja natureza é a de mandar com aquele cuja natureza é a de ser mandado, tendo em vista a conservação em comum ([1]).

A casa, ou família em sentido amplo, formou-se destas duas comunidades: do homem e da mulher, do senhor e do escravo. É uma comunidade constituída pela natureza para a satisfação das necessidades quotidianas, sendo constituída por aqueles que comem o mesmo pão ou que se aquecem com o mesmo fogo, como o próprio Aristóteles evoca, citando autores anteriores.
A casa é assim entendida como uma sociedade mais ampla que a dos parentes biológicos, dado que nela também se incluem os escravos. E o mesmo Aristóteles, acentuando o carácter económico desta comunidade, não deixa de assinalar que, nas famílias pobres, em vez dos escravos, estão os bois.

A aldeia
Depois, vem a aldeia (kome), a união de várias casas e de várias famílias, que continuando a ter em vista a satisfação de necessidades vitais, já não se reduz apenas à satisfação das necessidades quotidianas. Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a primeira comunidade formada por várias famílias tendo em vista a satisfação de necessidades que já não são puramente quotidianas. E que parece ser uma extensão da família. Só depois da associação de várias aldeias pode surgir a polis.

Genos

Contudo, Aristóteles não diz que todas as formas de associação de aldeias geraram uma polis, introduzindo, na sequência da exposição, a referência a uma entidade composta de aldeias, mas qualitativamente diferente: a genos, a mera associação de famílias, que uns traduzem por estirpe, outros por nação, não faltando sequer quem a refira como pátria ([2]).
Aristóteles refere que a genos subsiste ao lado das poleis, definindo aquela como a reunião de elementos submetidos ao regime monárquico. Porque o rei está para a família extensa como o pai para a família, dado que, em ambos os casos, o elemento de ligação é o parentesco entre os seus membros. Acrescenta, no entanto, que, na origem, as poleis eram governadas por reis.
De facto, a polis teve remotas origens na genos, onde todos os membros descendiam de um antepassado comum ou tratavam de adorar a mesma divindade. Uma genos, dirigida por um chefe, detentor da palavra divina, dona de um código de justiça familiar, a themis.
Uma genos que, entretanto, se sedentarizou, instalando o palácio do chefe e os santuários na parte alta (a acropolis), enquanto, na parte baixa (asty), existiam as aldeias. Com efeito, só quando se deu o desenvolvimento da agricultura e do comércio a parte baixa ganhou relevo, surgindo então o fluído nome de polis para qualificar o conjunto. Isto é, a polis, mistura da acrópole com a campina, tem origem numa inicial pátria militar instalada numa cidadela, com preponderância da nobreza militar e do sacerdócio, uma entidade que só atingiu a dimensão de autarcia quando se aliou com a campina agrícola das redondezas, quando a paz permitiu segurança no cultivo dos campos e no doce comércio.

Diferença entre polis e genos
A congregação de várias aldeias, segundo Aristóteles, pode conduzir tanto à polis como à genos, que são qualitativamente diferentes, apesar da polis ter origem na genos. Com efeito, segundo a parábola, foi com a instalação de um chefe na acrópole, na cidadela unificadora, que se congregaram em torno desta várias aldeias, ao mesmo tempo que ao lado do palácio do chefe, se ergueu o altar para a adoração da divindade comum.

A união pela origem comum
Com efeito a genos é sempre uma união pelo parentesco, pela origem comum, tem a ver com a estirpe, donde se nasce (natio). Pelo menos, os respectivos membros julgam-se descendentes de um antepassado comum, de um pai-fundador.

Uma família extensa
Em segundo lugar, a genos assume-se como uma família extensa e está dependente de um chefe hereditário que é também uma espécie de pai em ponto grande. O que se explica pela circunstância das populações congregadas em torno da acrópole se terem sedentarizado, pela agricultura e pelo comércio, juntando a campina das aldeias e dos arredores.

Uma divindade comum
Em terceiro lugar, a genos tende a adorar a mesma divindade. Assim, a polis nunca perdeu o símbolo da genos inicial, embora se tenha alargado, quando juntou a guerra ao doce comércio, quando juntou aos deuses matriciais o otium e o negotium.


Da racionalidade técnica à racionalidade ética
Se a existência da família em sentido estrito — a relação masculino/feminino e relação progenitores/ filhos — reflecte uma etapa primária de agregação, marcada pela sensação de prazer e de dor, idêntica àquele instinto de conservação da espécie que também possibilita aos animais viverem em rebanho, eis que a emergência da família extensa, no sentido clássico de casa, com um chefe da casa, parentes e escravos, já tem uma raiz económica, no sentido de oikos-nomos, de administração da casa.
Aqui, o homem, ultrapassando o animalesco, já é marcado por uma racionalidade técnica, já é um sócio que se agrega em nome de considerações técnicas e práticas sobre o útil e o prejudicial, já desenvolve um pensamento retrospectivo e prospectivo ao serviço de interesses individuais e de carácter grupal, já tem em vista a constituição de uma associação pragmática de fins, de uma comunidade económica, de uma aliança de guerra e comércio, já procura uma vida mais agradável e segura. Só que se impõe algo mais do que a mera racionalidade técnica. A polis exige também uma racionalidade ética, exige a representação comum do bom e do justo, exige a consideração de um interesse comum no bem e no mal, no direito e no não direito ([3]).
A polis não é apenas junção societária, não é apenas proximidade, contiguidade e forma de vida conjunta. A polis é, sobretudo, koinonia, comunhão, comunidade, consciência de um destino comum, fé comum, comunhão em torno de coisas que se amam. Exige a justiça (dike), mas também pressupõe amizade (philia), aquelas formas de mobilização afectiva que só podem combater a apatia se assentarem numa educação que também seja formação (paideia).



A complexidade da polis
Só depois de referir a casa, a aldeia, e a genos Aristóteles trata da polis, assumindo a respectiva aparição de forma complexa. A polis, apesar de ser uma associação de várias aldeias, como estas são associações de várias casas, constitui, contudo, algo de qualitativamente diferente da anterior sucessão, dado ter em vista outro nível de fins.
Não visa apenas as necessidades vitais, não segue apenas a linha do parentesco, procurando um fim bem diverso, o bem viver. Não é também um conjunto maior que a aldeia, já que a genos, apesar de poder ser maior, não é uma entidade política, mas uma entidade étnica. Só a polis é, neste sentido, uma associação completa e perfeita.
Por outras palavras, Aristóteles reconhece a existência de comunidades antecedentes da polis e que estão na base desta, aquilo que podemos qualificar como sociedades pré-políticas, e que se formaram pelo instinto natural. Mas não deixa de referir que, paralelamente à polis, continuam a existir comunidades, como a genos, cuja união não é marcada pelo bem que constitui o fim da polis.
A genos, por exemplo, se não é uma associação política, por não ser uma associação de homens livres e iguais, também não é algo de pré-político. Do mesmo modo, não seriam políticas as uniões estabelecidas por tratados de comércio ou por tratados de segurança entre várias cidades.
Seguindo as próprias palavras de Aristóteles, temos que os homens não se associam tendo em vista apenas a existência material, mas principalmente tendo em vista a vida feliz (de outro modo uma colectividade de escravos ou de animais seria uma polis, o que seria, aliás, uma coisa impossível, porque tais seres não têm nenhuma participação na felicidade nem naquela forma de vida que se funda na vontade livre), e também não se associam para formarem uma simples aliança contra qualquer injustiça, da mesma forma não o fazem tendo somente em vista as trocas comerciais e as relações de negócios de uns com os outros ([4]).
Com efeito, não poderia ser qualificada como polis qualquer espécie de união de povos por intermédio de tratados comerciais — todos os povos ligados entre si por tratados comerciais, seriam como cidadãos de uma só polis — ([5]), como sucederia com a esfera de influência dos cartagineses.
Nas uniões de povos por intermédio de tratados visando matérias comerciais ou por de segurança, se podem proibir-se as injustiças recíprocas, não há magistraturas comuns a todas as partes contratantes, dado que cada uma conserva os seus próprios magis­trados, não se preocupando com a moralidade dos cidadãos de outra polis. Na verdade, o único objecto destes acordos é evitar que os cidadãos de um país causem dano aos de outro. Todas as poleis que, pelo contrário, se preocupem com uma boa legislação, prestam uma especial atenção em tudo o que diz respeito à virtude e ao vício entre os respectivos cidadãos. Neste sentido, Aristóteles observa que a polis não é uma simples comunidade territorial, estabelecida com o fim de se impedirem as injustiças recíprocas e de se favorecerem as trocas. Sem dúvida, estas são as condições que devem ser necessariamente realizadas se queremos que uma polis exista; contudo, mesmo que se reúnam todas estas condições, nem por isso existe uma polis. A polis é a comunidade do bem viver para as famílias e os agrupamentos de famílias, tendo em vista uma vida perfeita e independente. A polis tem em vista uma vida em felicidade, tem de ser obra da amizade, tem de ter em vista uma vida perfeita e independente, pois existe para que possa realizar-se o bem, não tendo apenas como objectivo a vida em sociedade ([6]).







Conclusões actualistas
Da parábola de Aristóteles, podemos retirar algumas conclusões bem actualistas. Primeiro, que o social é mais do que o mero animal. Segundo, que o político é mais do que o social. Terceiro, que o político assenta no social. Com efeito, o político é sempre comunhão, o político é justiça, amizade e paideia, essa educação que é formação. Mais: o político vai além do autárquico, exigindo um bem-viver. Não é apenas o sobreviver, que exige a submissão. Impõe um viver que é viver com. Impõe que lutemos para continuarmos a viver. Logo, só a polis é uma associação completa e perfeita.
Com efeito, há sociedades prépolíticas, formadas pelo instinto naturalístico. Há sociedades parapolíticas, que apenas visam a racionalidade técnica. Há formas de um gregário metapolítico e a latere do próprio político.
Neste sentido, a polis, ou, se quisermos, o Estado, distingue-se sempre da genos, ou, se quisermos, da Nação. Porque a polis é sempre uma associação de homens livres e iguais.
Também as uniões para a segurança e o comércio não são verdadeiramente políticas. Nelas não há uma moralidade comum, porque a preocupação que as fundamenta é a comutação, o alterum non laedere, o impedir que cada um cause dano ao outro. Enquanto a polis tem sempre em vista a felicidade.




Ambivalência
O modelo clássico da polis foi sempre marcado pela ambivalência. Se, por um lado, ela visa atingir a autarquia, aquele espaço de auto-suficiência que lhe permite satisfazer as necessidades vitais dos respectivos membros, também existe para bem viver.
Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a polis, formada de início para satisfazer apenas as necessidades vitais, existe para permitir bem viver (eu Zein) ou viver segundo o bem ([7]).
É esta dupla exigência que transforma a polis numa sociedade perfeita. Não apenas porque visa a autarquia, o viver, mas porque, além do viver, exige o bem viver.
E esta exigência de bem viver que faz da polis uma forma de associação humana totalmente diferente das associações infrapolíticas. Porque, se todas as formas de associação humana visam um determinado bem (agathon), aquela que visa um bem maior tem de ser superior à que visa um bem menor.
Haverá assim uma comunidade que é a mais alta de todas e a que engloba todas as outras. Esta comunidade é aquela a que se chama polis, é a comunidade política [8].
Parte-se do princípio que a politicidade tem de ser poder mais liberdade, tem de ser governação mais participação, porque não há polis que não tenha como base a cidadania.
A polis tem de ser suficientemente grande para poder atingir a auto-suficiência, para conseguir um poder de governação, mas também tem de ser suficientemente pequena para permitir a liberdade e a participação. Logo, não pode ser grande demais nem pequena demais. Tem de ser harmonia. Tem de crescer na medida compatível com a sua unidade. Tem de ser suficiente na sua unidade.
A polis aparece, pois, como um conjunto geo-humano e geo-histórico, como associação de pessoas e comunidade de gerações, como um todo que tanto é autarcia como comunidade, que tanto é auto-suficiência como comunhão. Como a mistura de uma terra, de um povo e de uma ideia, onde a ideia faz da multidão um povo e trata de espiritualizar um determinado território, e não o inverso, como naquela degenerescência que ora leva à territorialização de um povo, ora à proprietarização de uma ideia.
Assim se chega ao conceito romano de civitas, entendida como um agrupamento de homens livres, estabelecidos num pequeno território, todos dispostos a defendê-lo contra qualquer ingerência estranha e, sobretudo, onde todos detêm uma parcela de poder, bem diversa daqueles modelos políticos territorialistas, onde um só homem exerce o poder duma forma absoluta e exclusiva ([9]).



A civitas romana, base do projecto europeu do político
É a partir desta realidade que Cícero concebe a civitas como uma multitudo que visa uma communio, mas onde a comunhão de interesses não pode deixar de ser uma comunhão de fins.
Contudo, sempre se considera que esse conjunto tem de ser movido por um consensus iuris, por um consenso de direito onde o direito positivo, o direito posto (positum), o direito estabelecido na cidade, não pode deixar de se nortear pelo direito natural, entendido como a lei que está inscrita no coração dos homens. Porque se o direito positivo é contingente, mutável e localizado no tempo e no espaço, importa que este seja sempre corrigido por um direito eterno, imutável e universal.

Res publica igual a res populi
É neste sentido que Cícero dá o nome de respublica àquilo que os gregos chamavam polis, considerando-a como coisa do povo, como a sociedade formada pelo amparo do direito e com o fim da utilidade comum. Uma res publica que soma a libertas do populus, à auctoritas do Senado e à potestas dos magistrados, esse regime misto, com separação e fusão de poderes, harmonicamente dinamizados.


Do particular para o universal
A partir desta síntese estóica, greco-romana, a polis concebeu-se como algo que parte do particularismo, da diversidade e da diferença para atingir o universal, para a descoberta do infinito pela atenção ao finito (J. Hirschberger), para a noção de que o universal é o local menos os muros, conforme as palavras de Miguel Torga.
A partir de então, conforma-se a essência do projecto europeu e ocidental do político, esse processo de resolver a oposição entre o uno e o diverso, de maneira diferente de certa metafísica oriental, onde, quase sempre, se suprime o segundo dos termos, através de uma ascese que apaga a diferença e o próprio indivíduo, a fim de fundar o uno sem distinção, como nos ensina Denis de Rougemont.

O universal não tem de ser o geral
Essa viagem do particular para o universal, impõe que não se reduza o universal aquilo que apenas é geral. Porque o universal não tem de ser o geral. Tem de resolver a oposição entre o uno e o diverso sem apagar a diferença. Tem de manter a tensão criadora das coisas vivas, que permitir que se atinja o universal pelo particular, que se chegue à transcendência pela imanência, que se encontre a essência na existência, admitindo um transcendente situado, um dever-ser que é.


A partir de então, o pensamento clássico do político assumiu que devem manter-se os dois termos da oposição, não em equilíbrio neutro, mas através de uma tensão criadora, daquela mesma que falava Heráclito: o que se opõe, coopera, e da luta dos contrários deriva a mais bela harmonia.
Porque só se atinge a transcendência pela imanência. Porque todo o transcendente só pode ser um transcendente situado. Porque toda a essência só se realiza através da existência. É o tal existencialismo que não é anti-essencialista e o tal laicismo que não é deicida.




As degenerescências
Saliente-se, contudo, que a poliarquia da república romana é, depois, expropriada pelo princeps, sendo esmagada pelo peso do Imperium, primeiro, quando, com Diocleciano, a partir de 284, o Imperator se assume como dominus e deus e, depois, quando, com Constantino, a partir de 311, a cidade-Estado volta a ser cidade-Igreja. Quando deixa de haver separação entre o que era de César e o que era de Deus e a autonomia da política é absorvida pela moral religiosa, principalmente com o chamado agostinianismo.
Com efeito , a res publica é sucessivamente degenerada pelo imperium e pela teocracia. Com o princeps começa o modelo da usurpação; com o dominado, o despotismo, a que, depois, acresce o constantinismo, ponto de partida para o bizantinismo, a teocracia e o cesaropapismo, quando a a cidade-Estado volta a ser cidade-Igreja.

O regresso da política no século XIII
Contudo, o modelo poliárquico, de matriz aristotélica e estóica, renasce e é, desta semente que emerge a perspectiva medieval do reino e da cidade, as novidades pós-feudais e pós-imperiais que emergem nos séculos XII e XIII, tendo em São Tomás de Aquino o principal teórico.
Dá-se, então, a restauração e a cristianização da ideia de política, reagindo-se assim contra a expropriação do político pelo império e da autonomia da política pela moral religiosa, como acontecera durante a vigência do constantinismo e do agostinianismo.
A polis voltou a ser unidade de ordem e não unidade substancial, onde o todo deixou de significar fusão das partes que o compõem num ser unidimensional, num totum continuum, num simpliciter unum. A polis é vista como mera essência relacional, como simples unidade de relação.
Por outras palavras, consagrou-se a circunstância de não poder haver polis sem autonomia dos cidadãos, a fonte do consentimento, a origem imediata de todo o poder político. Porque a unidade engloba os cidadãos, mas sem os absorver, sem os diluir, sem os totalitarizar. Porque a unidade não é unicidade, tal como o todo não é o totalitário. A unidade é unidade na diversidade, diversidade de funções, mas harmonia para um fim unitário, um bem comum mobilizante.
A polis é apenas forma que se dá a uma determinada matéria: os indivíduos, tornados pessoas. É mais um processo do que uma coisa, é mais relação e estratégia do que objecto e reificação.


Laicização e racionalização do político
Há duas ideias básicas na perspectiva do político, segundo o tomismo. Primeiro,o laicismo e o racionalismo. Quando se coloca o consentimento dos membros da cidade na origem do poder, quando se proclama que o poder vem de Deus, mas atrvés do povo.
Em segundo lugar, a concepção da cidade como uma unidade de ordem e não como uma unidade substancial. Passa-se, asim, do holismo ao orgânico e supera-se o atomicismo pela ideia de unidade, teorizando-se o bem comum.

Do holismo ao orgânico
Em São Tomás, o político é concebido como algo de orgânico, onde a unidade engloba os cidadãos, mas não os absorve,ao contrário das perspectivas holísticas, que admitiam a fusão de todos os membros num ser único.

Do atomicismo à unidade
Em segundo lugar, supera-se a mera perspectiva atomística, quando se considera que o todo, por causa do fim que lhe dá unidade, é maior do que a mera soma das partes.

Bem comum
Em terceiro lugar, a civitas é perspectivada como uma unidade de relação, como uma unidade de ordem, como o todo de ordem, contrariamente ao indivíduo, considerado como a única entidade que tem substância própria. Assim, a cidade é vista como forma de que os indivíduos são matéria, podendo concluir-se que o político não é uma coisa, é um processo, que o poder não é uma coisa, é uma relação.

Unidade não é unicidade
Neste sentido, a unidade não é unicidade, tal como o todo não é totalitário. A unidade é unidade na diversidade, pois, apesar da diversidade de funções, há harmonia que resulta da procura de um fim unitário, de um bem comum mobilizante.

A ideia de comunidade perfeita
Daqui resulta uma conclusão voltada para o interior da cidade: a comunidade perfeita é entidade suprema que engloba outras comunidades.

A diversidade de cidades
Já quanto às relações exteriores da cidade, conclui-se que há uma diversidade de cidades, resultante de uma diversidade de fins.


É este o principal contributo de São Tomás, quando fala na civitas como a união estável de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, um fim que identifica com o bem comum, entendido como a síntese da ordem e da justiça.
A civitas aparece como uma perfecta communitas, como uma unidade auto-suficiente, como uma entidade suprema, dado englobar outras comunidades, como as famílias e as aldeias, mas que apenas constitui uma unidade de ordem, um totus ordinis, onde existe aquela gubernatio que permite conduzir convenientemente o que é governado a um determinado fim.
Pode, a partir de então, proclamar-se que há uma diversidade de cidades resultante da diversidade de fins e das maneiras diferentes que cada cidade tem de tender para o mesmo fim. Isto é, podem escolher-se fins diferentes e até há maneiras diferentes de tender-se para o mesmo fim.




Consensualismo
Estão assim criadas as bases que serão desenvolvidas por todo o posterior consensualismo, defensor da concepção racional do político, onde confluirão tanto a neo-escolástica peninsular, de cariz católico, com destaque para as teses de Francisco de Vitória e Francisco Suarez, como certo pensamento protestante pós-teocrático, de Johannes Althusius a John Locke.
A polis é tão só uma sociedade perfeita porque tem um fim perfeito. É uma entidade superior que engloba várias entidades inferiores. Uma entidade perfeita que tanto pode cingir entidades imperfeitas como várias entidades perfeitas.
Porque a política é aquilo que faz simbiose, que faz unidade na diversidade. Como diz Althusius, é o que permite a comunicação mútua daquilo que é necessário e útil para uso e consórcio da vida social.
Não basta o que é comum aos animais, o que faz com que haja rebanhos, importa a racionalidade técnica, dos que procuram o bem-estar e a segurança. Mas essa racionalidade técnica, comum às sociedades imperfeitas, como a casa e a empresa, não chega. Serve para os sócios resolverem a questão do bonum utile, não chega para se atingir o bonum honestum da racionalidade ética, só passível de cidadania.
Os homens, com efeito, consociam-se de maneira diversa. De maneira simples ou privada, contratual ou societária, onde há comutação. Mas também se consociam de maneira complexa, mista ou pública, para constituírem comunidades perfeitas, norteadas pela justiça global, pelo que, à justiça comutativa, tem de acrescentar-se tanto a justiça distributiva como a justiça social.
A forma complexa, mista ou pública de consociação passa a ser aquela onde muitas consociações privadas ou simples se unem, como salienta o mesmo Althusius, pelo direito de poder comunicar e participar o útil e necessário para a vida do corpo constituído.
Eis a polis, a tal consociação universal, pública e maior, continuando Althusius. O tal corpus politicum et mysticum que, segundo Suarez, resulta de um específico acto de união para uma associação moral, a tal comunidade mística, unida por um fim, uma comunidade politicamente organizada e não apenas uma multidão inorgânica.
A polis não é apenas societas, pensada através de um omnes ut singuli, referido por Francisco Suarez, ou pela vontade de todos de Rousseau, onde cada um exprime a sua vontade pensando nos respectivos interesses. A polis é algo mais: é a vontade geral, de Rousseau, onde cada um se exprime pensando nos interesses do todo, é um omnes ut universi, conforme as palavras de Suarez.
Na polis há uma especial vontade ou um comum consentimento para se reunir um corpo político, para voltarmos a Francisco Suarez. Surge assim uma polis, a sociedade de vida, em parte privada, natural, necessária, espontânea, em parte pública, segundo as palavras de Althusius.
Não caem estas correntes nos vícios soberanistas do absolutismo. Para elas, a polis é uma sociedade perfeita, perfeita em relação a si mesma, por ser dotada de uma autonomia intrínseca — por ter uma plenitude de direito e de poder, por possuir um governo — e de uma autonomia extrínseca — e perfeita relativamente a sociedades idênticas.


Política igual a justiça
A consociação privada apenas visa a justiça comutativa, apenas se situa a nível da comutação e da troca, típica das comunidades imperfeitas, das relações das partes com as partes, onde deve ser marcante o alterum non laedere.
Algo de qualitativamente diversa é a consociação complexa, mista ou pública que visa uma comunidades perfeita. Mas esta não é perfeita porque nasce de cima para baixo. Esta não é apenas o vertical, mas antes o que circula de forma descendente e ascendente.
Visa, por um lado, o a cada um conforme as suas necessidades (relações do todo com as partes), isto é a justiça distributiva do suum cuique tribuere.
Visa, por outro, o decada um conforme as suas possibilidades (as relações das partes para com o todo), isto é, a justiça geral ou social, o honeste vivere.

Res publica, consociação pública maior
Utilizando a terminologia de Althusius, a res publica aparece como uma consociação pública maior, como a união de muitas consociações mistas ou públicas. Assim, consociações mistas ou públicas existem antes da consociação pública maior. E as mesmas consociações, todas juntas, até têm mais poder que o próprio poder soberano. Aliás, o que as unifica é o fim, isto é, o direito e não o poder do soberano. O que não impede a consociação pública maior de ser mista, mista de público e de privado.

Povo, sociedade, contrato
Polis é povo, societas e contrato. É povo politicamente organizado, é comunidade e é instituição. É sociedade organizada, dotada de um poder supremo, tendo um status politicus ou civilis (uma estrutura política), assumindo-se como civitas (um corpo íntegro, um conjunto de indivíduos associados) e sendo uma res publica (a administração dos assuntos comuns da governação), como assinalava Espinosa. É, como dizia Rousseau, acção do todo sobre o todo, o tal ser comum feito de uma multidão de seres razoáveis. É, nas palavras de Aron, a colectividade considerada como um todo. Ou, para subirmos à perspectiva de Kant, um Estado-razão, o tal contrato original pelo qual todos os membros do povo limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo como membros da comunidade, o povo olhado como universalidade.
Impõe-se, portanto, que cada polis, segundo os termos do mesmo Kant, seja res publica, potentia e gens, que seja, ao mesmo tempo, comunidade, autonomia e nação, que seja associação de pessoas, com poder, mas enraizada numa comunidade de gerações. Não basta o contrato, mas não se exclui o contrato. Exige-se algo de mais, mas sempre através de um plebiscito de todos os dias praticado em torno das coisas que se amam.




([1]) ARISTÓTELES, A Política, cit., I,2, 1252a, pp. 24-25.
([2]) Se natio vem de nascer, patria vem de patrius, isto é, terra dos antepassados. Ver o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, I, p. 286.
([3]) OTTFRIED HÖFFE, Justiça Política. Fundamentação de uma Filosofia Crítica do Direito e do Estado, trad. port., Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 219-223.
([4]) ARISTÓTELES, A Política, cit., 1280a, pp. 206-207.
([5]) Idem, p. 207.
([6]) Idem, p. 207.
([7]) ARISTÓTELES, A Politica, I, 2, 1252b, p. 27.
([8]) Idem, I, 1, 1252a, p. 22.
([9]) Definição de SEBASTIÃO CRUZ, Direito Romano, I, Coimbra, 1984, 4ª ed., p. 58.

24.2.07

A crise do Estado II

Segundo o ensino do Professor Adriano Moreira, há movimentos de convergência mundialista, ao mesmo tempo que se aceleram processos de divergência e de dispersão e dessa complexidade surgem novas formas políticas, desde os grandes espaços aos órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão.
Dito de outra forma: a planetização dos fenómenos políticos, a marcha para a unidade do mundo, como se nota na existência de uma multiplicação das relações mútuas, vem acompanhada por uma multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão.
Isto é, as relações internacionais são complexas. E as coisas complexas são precisamente aquelas onde há simultaneamente convergência e divergência.
A convergência, a planetização dos fenómenos políticos nota-se na marcha para a unidade do mundo. Problemas como a fome, a explosão demográfica, a domesticação da energia atómica são todos eles indivisíveis.
A divergência nota-se na multiplicação das relações internacionais. Se, por um lado, se assiste a uma multiplicação quantitativa (aumentam os contactos através das velhas formas) e a uma multiplicação qualitativa (surgem novas formas de contactos) das relações internacionais, eis que também se dá uma proliferação dos centros de decisão que se manifesta no aumento do número de Estados (cerca de duas centenas), no aparecimento de novas entidades supra-estaduais, bem como no surgimento de ONGs resultantes da internacionalização da vida privada.
Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do principe sobre a república.
Utilizando as categorias de Maquiavel, diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas.
Mas se utilizarmos termos paralelos diremos que estão em crise os soberanos não estão em crise as nações
Está em crise o modelo absolutista do político, esse que continua o processo dos déspotas esclarecidos como Luís XIV, Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de 1792 a 1796, e que constituiu um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que vai ser continuado por Napoleão, Lenine, Mussolini, Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot.
Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.
Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo.
Está em crise o poder, não está em crise a liberdade. O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt, enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas.
Julgo não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da Nação que pretende resistir como polis ou o da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que a cada nação corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.
Como a este respeito observa Dusan Sidjanski, estes fenómenos enfraquecem a tarefa dos Estados sobre o comportamento de outros grandes actores que saem teoricamente do seu controlo.
Com efeito, a revolução globalista levou à crise do Estado Soberano, principalmente daquele modelo que era representado pelas grandes potências nascidas com o absolutismo. Principalmente dos Estados herdeiros dos grandes projectos de império.
Mas perante o gigantismo do Estado grande demais, eis que também se manifesta a fascinação pelo singular cultural e nacional. Eis que face à tendência para a uniformização e para a imitação de um modelo comum. manifesta-se a vontade de se distinguir pela herança histórica e pela identidade nacional ou regional. Face à massa e ao gigantismo, desenham-se novos valores, a qualidade e a beleza do detalhe, da miniatura. Há portanto lugar a novas formas de nacionalismo.
Como dizia Albert Camus, a Europa tem vivido sempre nesta luta entre o meio-dia e a meia-noite, uma confrontação entre o equilíbrio e o desequilíbrio, as lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrânico, traduzindo-se em a comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade reflectida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas.
Ou como Almada Negreiros proclamava que o Norte e o Sul da Europa são a eterna divergência das duas interpretações possíveis que ligam o particular ao geral: o Norte representando o sentido do particular para o geral; o Sul o do geral para o particular.
Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.
Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas. Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático.
Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.
Dizer que está em crise o Estado Soberano, dizer que o conceito pós-renascentista não serve, significa tentarmos outras formas de procura de um impulso integrador para a organização do político.
Neste sentido, subscrevemos as palavras de Jean Monnet, num discurso de Janeiro de 1968, proferido no Sarre: estou chocado pela diferença entre os princípios que aplicamos dentro das nossas fronteiras e os que aplicamos fora delas. No seio das fronteiras nacionais, os homens já há muito encontraram e aperfeiçoaram meios civilizados para fazer face aos conflitos de interesses; já não precisam de recorrer à força para de se defenderem. As leis e as instituições estabeleceram a igualdade de Estados. Mas fora das suas fronteiras, as nações ainda se comportam como os indivíduos se comportariam se não houvesse leis nem instituições. Todas essas nações, em última instância, se apegam à soberania nacional - isto é, todas essas nações se reservam o direito de julgar a sua própria causa.
A soberania é isso mesmo: o princípio da manutenção da vingança privada nas relações internacionais, o reconhecimento da guerra, a negação de que o poder internacional possa ter como limites o direito e a moral, dado que continua a prevalecer o tem razão quem vence, isto é, que a razão da força é mais forte que a força da razão.
Conforme escrevia Harold Laski, depois da primeira guerra mundial, temos de reconhecer que os Estados devem ser julgados exactamente de acordo com os mesmos princípios que as igrejas, os sindicatos ou as associações científicas. Com relação às pessoas que os constituem, os Estados não constituem pessoas morais, vivendo num plano diferente ou submetidas a princípios diferentesPorque não existe ... diferença qualitativa entre os interesses ou os direitos dos Estados e os interesses ou os direitos das outras associações ou indivíduos. Os seus fins são dos mais vulgares, humanos como todos os outros; têm por missão assegurar a felicidade dos seus membros.
O Estado nada mais é que uma das formas do político, humano, demasiado humano e não é pelo facto de o armarmos de um princípio também inventado pelos homens, o da soberania, que ele passa a ser o advento de Deus à terra. A não ser que consideremos a guerra como a suprema expressão da civilização, quando ela não passa de uma das muitas formas de resolução de conflitos.
E voltando a Laski, sempre diremos que o começo da guerra marca o fim da liberdade; a guerra faz recuar indefinidamente qualquer possibilidade de resolver equitativamente um conflito.
Está em crise aquele conceito de poder que considera que a guerra pertence à essência dos Estados, rejeitando a existência de um árbitro final nas questões internacionais e negando a hipótese teórica de uma paz pelo direito, quando considera, afinal, que a paz é uma continuação da guerra por outros meios.
Rejeitando as consequências absolutistas do soberanismo, da omnipotência do Estado e do próprio pessimismo antropológico, de herança maquiavélica e hobbesiana, em que acabaram por se aliar jacobinismos e corporativismos, há, no entanto, quem, na actualidade, prossiga uma linha de pensamento que parte de Aristóteles e Cícero, passa por São Tomás de Aquino e se vai revigorando com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e outros mais do nosso tempo que permanecem fiéis à perspectiva pluralista do político.
Pensam assim todos aqueles que tentaram atingir a modernidade sem uma solução de ruptura face ao renascimento que significou certa Baixa Idade Média, precisamente aquele que viu emergir os reinos e, depois, os próprios descobrimentos. Foi assim com o nosso humanismo do século de Camões, foi assim com a Inglaterra da continuidade lockeana, com os Países Baixos de Althusius, com a Suíça confederal e com essa revolução evitada que foi a independência norte-americana...
Muitos são os subsolos filosóficos que se cruzam neste pluralismo contemporâneo, onde será difícil encontrar a proclamada dicotomia entre liberais e socialistas ou entre conservadores e progressistas.
Linhas de matriz liberal, de marca moderada e ética, podem retomar Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e outros, como o krausismo liberdadeiro que, entre nós, acaba por preponderar, a partir de Alexandre Herculano e Vicente Ferrer Neto Paiva.
Linhas de matriz socialista podem subir do federalismo de Proudhon ao guildismo, às teses britânicas do self-government e ao cooperativismo.
Linhas do conservadorismo podem retomar certas perspectivas consensualistas do tradicionalismo, reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do solidarismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do soberanismo, do centralismo e do concentracionarismo.
Também algumas teses progressistas podem assentar nas perspectivas da sociedade sem Estado, do socialismo utópico, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicissímas teses da polis de há vinte e cinco séculos.
À direita e à esquerda, pluralismo, individualismo, democracia, funcionalismo, divisão e separação de poderes, podem irmanar-se na defesa daquele antiquíssimo regime misto que tanto rejeita o atomicismo como o colectivismo.
À direita e à esquerda, através do humanismo cristão, católico ou protestante, ou do humanismo laico, neoclássico ou modernizante, muitos se irmanam numa concepção anti-absolutista do político, através do ideal histórico concreto de consenso, da política como arte de unir os contrários ou os simples divergentes pela persuasão e pelo consentimento.
Seguindo a lição de Hannah Arendt, diremos que o soberanismo aceita a velha ideia de poder absoluto acompanhou a ascensão do Estado-nação soberano europeu, cujos primeiros porta-vozes foram Jean Bodin, na França do século dezasseis, e Thomas Hobbes, na Inglaterra do século dezassete, mas que existe, no entanto, uma outra tradição e um outro vocabulário não menos velhos e veneráveis. Quando a cidade-estado de Atenas chamou à sua constituição de isonomia, ou quando os romanos disseram ser a civitas a sua forma de governo, tinham em mente um conceito de poder e lei cuja essência não se fiava na relação ordem-obediência e não identificava poder com domínio ou lei com ordens.
Aquele conceito que levou os federalistas norte-americanos como James Madison (1751-1836), a dizer que todos os governos repousam na opinião e à elaboração de uma constituição como a norte-americana onde foi possível considerar que o tratados externos são parte integrante da lei do país porque, como dizia o juiz James Wilson em 1793, o termo soberania, para a Constituição dos Estados Unidos, é completamente desconhecido.
Se o soberanismo adopta o modelo do contrato social de Hobbes, onde surge uma versão vertical do contrato reduzido ao pactum subjectionis que leva a um monopólio do poder, segundo o qual todo o indivíduo celebra um acordo com a autoridade estritamente secular para garantir a sua segurança, por cuja protecção ele renuncia a todos os direitos e poderes, haveria uma outra versão do mesmo contrato, a de Locke, marcado pela versão horizontal onde o elemento marcante já seria o prévio pactum unionis. Aqui já não é o indivíduo que estabelece o governo, mas antes o intermediário da societas, entendida no sentido latino como aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo. Assim, se o pactum unionis implica a limitação do poder de cada indivíduo deixa intacto o poder da sociedade; a sociedade então estabelece um governo, mas, como dizia John Adams (1735-1826) sobre o firme terreno de um contrato original entre indivíduos independentes
Esta seria uma nova versão da antiga potestas in populo. Esta seria a única forma de governo em que o povo é mantido pela força de promessas mútuas e não por reminiscências históricas ou homogeneidade étnica (como no estado-nação) ou pelo Leviathan de Hobbes que "intimida a todos" e desta forma une a todos.
A linha soberanista que vai do absolutismo ao modelo bonapartista de Estado-nação, ao considerar a soberania como o fim da história do político, como o cume unidimensionalizador do corpo político, veio destruir a necessária visão pluralista da polis.
Esse intervalo de modernidade sempre impediu que se concebesse o político como todo o espaço de sociabilidade institucional que ultrapassa o doméstico, não querendo admitir que pode haver político antes da estruturação vertical, hierarquista e piramidal dos Estados a que chegámos e que tem de haver político para além dos mesmos.
O político é plural e insinua-se através de sucessivos e heterogéneos estratos. O político é o que ultrapassa a aldeia e que só acaba na república universal. Porque há várias sociedades políticas, várias sociedades perfeitas que se acumulam, umas mais superiores e mais perfeitas, outras menos superiores e menos perfeitas.
Logo, que só pode resolver-se o problema pela via do princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada sociedade perfeita tem de ser autónoma, mas nem por isso deixa se inserir-se no âmbito de outras sociedade perfeitas, também autónomas.
Cada sociedade política é autónoma, isto é, tem poderes para estabelecer as suas próprias regras, tem um poder supremo de acordo com a sua própria natureza, um poder supremo na sua própria ordem, um poder supremo da exacta natureza do poder da sociedade mais superior onde se insira.
Assim sendo, havendo essa repartição originária do poder político por todos os corpos sociais perfeitos, não há uma soberania una, inalienável, indivisível e imprescritível. O próprio poder supremo é plural, contratualizável, divisível e susceptível de extinção.
O poder político não está apenas concentrado na cabeça do corpo político. Pelo contrário, reparte-se originariamente, constituintemente, por todos os corpos sociais dotados de perfeição.
Deste modo, cada corpo social tem um certo grau de autonomia para a realização da sua função. E o corpo político não passa de uma instituição de instituições de um macrocosmos de macrocosmos sociais, de uma rede de corpos sociais, de um network structure.
Porque há uma diversidade que apenas se une pela unidade de fim, pela unidade do bem comum que a mobiliza.
Portanto, uma sociedade de ordem superior não deve intervir na esfera de autonomia de uma sociedade de ordem inferior, da mesma maneira como uma sociedade de ordem inferior também pode transferir funções e consequentes poderes para uma sociedade de ordem superior.
Porque o princípio da subsidariedade é o mesmo que o princípio da subjectividade da sociedade. Da consideração de cada sociedade como um sujeito e não como um objecto ou como um contrapoder.
Que vários níveis de sociedades políticas podem coexistir por sobre a mesma multitudo. Porque sendo a polis mera essência relacional, cuja essência substancial é o indivíduo, pode este desdobrar-se participativamente, conforme os interesses e os bens comuns que lhe dão comunhão com os outros.
Dizer isto é aceitar o clássico princípio da polis, do respectivo entendimento como um conjunto de cidadãos.
Cada unidade substancial da polis, isto é, cada indivíduo, possui sucessivos status, do status libertatis ao status familiae, do status civitatis, da comunidade de base territorial ao estatuto de cidadão do género humano, como membro da comunidade internacional, da civitas humana ou civitas maxima.
Dizer que, em nome da dimensão social da pessoa, há o familiar e o profissional, mas que, em nome da dimensão política da mesma pessoa, há o municipal, o regional, o nacional e o universal, tentando conceber a democracia como aquele regime misto que não se esgota no estatismo e que até o deve superar, renegando tanto o individualismo, hobbesiano ou jacobino, como o corporativismo hierarquista que, contra-revolucionariamente, procurou antepor-se-lhe.
De certa maneira, retomar a perspectiva de algum federalismo integral, mas compensando-o com a visão consensualista do contrato social.
Isto é, pondo o assento tónico no pactum unionis, considerando como fundamental o pacto que constitui a aliança horizontal da societas desvalorizando o pactum subjectionis do contrato de governo, perspectivado como instrumental, dado que este teria de conservar intacto o poder da sociedade.
Seguindo, algumas das linhas de pensamento de Otfried Höffe, diremos que importa superar certos preconceitos da filosofia política da modernidade que pensa em categorias de amigo-inimigo, de decisäo e sua efectivação, de comando e obediência e tende a uma absolutização do direito positivo e do Estado.
Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade.
Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou democrático, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.
Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual.
Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, que decretou a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos submetidos a um mesmo ente coordenador.
Está em crise aquele modelo absolutista que procurou territorializar um determinado espírito, que transformou a polis em propriedade, isto é, aquilo que é ser, em simples coisa que se pode ter, essa historicidade de um território, essa territorialização de uma história.
Foi esse o modelo, maioritariamente dito como Estado-nação, que procurou impor sobre todo o espaço do seu território a mesma língua, os mesmos costumes, um exército permanente baseado na conscrição, um sistema de ensino público único e que tratou de esatabelecer para todas as colectividades territoriais menores o mesmo modelo de pronto-a-vestir administrativo, atomicizando o espaço e homogeneizando as divisões segundo um modelo único.
Não está em crise a nação libertadora ou resistente, sobretudo aquela que continua a ser marcada pelo small is beautiful, que, conforme Jacob Burckhardt, existe para que haja no mundo um cantinho de terra onde o maior número de habitantes possam gozar a qualidade de cidadãos no verdadeiro sentido da palavra ... o pequeno Estado não possui nada a não ser a verdadeira e real liberdade pela qual compensa plenamente no plano ideal as enormes vantagens e até o poder dos grandes Estados
Se a nação garantir a presença no poder global dos elementos particulares - permanecendo distintos e reconhecíveis, se proceder a uma simbiose sem confusão nem desaparição das especificidades, como Pierre Duclos considerava a essência do federalismo.
Essa qualquer solução que tome por regra o respeito pelos dois termos antinómicos em conflito, compondo-os de tal maneira que a resultante da sua tensão seja positiva, ou, segundo os termos da teoria dos jogos, determinando um optimum no qual se conciliem os dois maxima contraditórios , conforme os ensinamentos de Denis de Rougemont.
Esse modelo que diríamos radicalmente pluralista, fiel aquele antiquíssimo conceito de arte política, como a arte de governar pela persuasão e pelo consentimento, pelo juntar e conciliar contrários, tecendo os opostos.
Recuperando o princípio da subsidariedade, da subjectividade da sociedade, e remontando ao pluralismo inicial das próprias teses iniciais do político.
Assim se fará conciliar a região com a liberdade nacional, com as nações que são liberdade e libertação. Com esse fervilhar espontâneo de sociedades diversas que rodeiam as pessoas sob a unidade viva de uma tradição histórica e de uma cultura particularizada na sua expressão, mas virtualmente universal, com a nação como uma realidade mista e não cristalizada: na base, receptáculo de uma multiplicidade de sociedades que não lhe cabe digerir, mas sim manter vigorosas; no cume, se não é uma comunidade no sentido perfeito da palavra, é, pelo menos, já comunitária, laço flexível e vivo entre a universalidade espiritual, a única que cada pessoa como tal pode alcançar e comportar, e as sociedades biológicas que cercam e retêm o indivíduo, como expressava Emanuel Mounier.
Algo que está enraizado no chão físico da origem do grupo e no chão moral da história, como assinalava Jacques Maritain.
A polis só pode ser entendida como a tensão dialéctica entre o poder e a liberdade, tal como o direito só pode conceber-se como o diálogo da justiça com a força. A polis só pode ser entendida como o espaço de diálogo entre a decisão e a participação, entre a governação e a cidadania, como a exigência de unidade na diversidade, como a harmonia dos discordes.
Este entendimento pluralista da polis, este perspectivar a polis, não como uma sociedade, mas como um mosaico de sociedades vivas. De sociedades imperfeitas, ou consociações simples ou privadas, e de sociedades complexas, já de carácter público. Este entendimento da polis como um macrocosmos de macrocosmos e microcosmos políticos e sociais, como um mosaico de espaços de cidadania, isto é, de espaços de participação política na decisão.
Só assim pode superar-se a tentação corporativista, para a qual cada grupo tem uma posição pré-definida, pelo a priori de um preceito, no modelo de participação na decisão e onde o próprio conceito de representação obedece a um regulamento estatuidor.
Os grupos, as consociações, para o corporativismo, são sempre concebidos como corpos intermediários entre o indivíduo e o cume do Estado, negando-se o individualismo, a espontaneidade da cidadania e comprimindo-se a política que deixa de ser entendida como um espaço de conflitualidade criadora, de luta entre os grupos, com a consequente negociação e troca.
Porque o essencial na política é sempre o afrontamento, o ajustamento, a dinâmica, através de constelações que se fazem e desfazem e de uma pluralidade de centros de decisão.
Só assim pode superar-se a tentação jacobinista, simultaneamente individualista e estatista, onde o individualismo se transforma num cidadanismo estatizante que proíbe a existência de qualquer espaço de participação política entre a individualidade e a estadualidade e onde também se nega a hipótese de um político supra-estadual.
Se o sistema político tem de ser entendido como um sistema autónomo e aberto, como um sistema que tem relações de troca com o seu ambiente, não pode deixar de ser concebido como autónomo e aberto tanto face aos subsistemas sociais do seu interior, como face aos subsistemas políticos, também marcados pela autonomia e pela abertura que o integram.
Isto é, o espaço do político não pode ser monopolizado pelo estadual nem ser subjugado pelo soberano, dado que no chamado infra-estadual também circula o político. Mesmo quando o estadual coincide com o nacional, o sistema político não deixa de ser um complexo de sistemas políticos e de subsistemas sociais.
A região, dentro do espaço estadual, também é um sistema político, dotado do seu próprio circuito de decisão, não podendo ser reduzida ao simples circuito administrativo. Em certo sentido, é tão sociedade perfeita quanto o próprio Estado. Pode não ter ius legationis, ius tractum, ius jurisdictionis e ius bellum, mas tem povo, território e poder político, tem um poder de decisão que já não é apenas técnico, pois que decide sobre fins, sendo dotada dos meios necessários para os alcançar. Isto é, tem liberdade, na escolha de fins, e poder para os executar.
Quem advogar uma visão pluralista da organização do político, onde cada estrato seja sempre uma manifestação do indivíduo, ao contrário do que defendia o corporativismo; quem advogar que cada estrato não pode diluir-se piramidalmente no todo soberano, ao contrário das teses jacobinas, tem de repudiar a perspectiva do político como o unidimensional e o homogéneo e tem de defender a necessidade de cada estrato poder desenvolver as respectivas potencialidades.
O reforço das autonomias, neste sentido, não é o contrário das liberdades nacionais. Com uma nação que não se meça pelo Estado-aparelho-de-poder, mas sim por uma metapolítica de identidade que pode não coincidir com os Estados a que chegámos. Com a necessidade de uma comunidade de significações partilhadas, com um povo reunido por hábitos complementares de comunicação, como diria Karl Deutsch.
Porque uma só nação pode ainda hoje estar repartida por vários Estados. Porque uma só nação pode ter no seu seio várias regiões. Porque nem sempre as regiões coincidem com as nações. Porque nem sempre o sentimento de uma comunidade pelas coisas que se amam coincide com a racionalidade do Estado.
Nação é sobretudo comunhão em torno das coisas que se amam, é civitas amoris, é o tecer espontâneo de laços no plano das articulações laterais e verticais por onde se gera uma polis.
Direi que talvez existam realidades políticas diferentes dos Estados-nações, dos Estados que querem, através do aparelho de poder, construir nações. Talvez existam realidades políticas que são o preciso inverso, realidades políticas a que chamaremos Nações- Estados.
Direi que Portugal é uma dessas raras entidades de nação-Estado que, portanto não tem que temer a plena liberdade das suas regiões, dado que elas, felizmente, não constituem nações sem território, povos sem Estado ou pretensas nacionalidades.
Por aqui pode passar o consenso, mesmo que se chame federação. Por aqui pode passar a divisibilidade da soberania, a descolonização interna e a pluralidade das pertenças. Não continuemos a traduzir em calão juridicidades feitas para outras realidades, pensadas para outros medos, sofridas por outras culturas.
Julgo que não vale a pena confundir os nomes com as coisas nomeadas. Com efeito, no caso do Estado e da nação, da soberania e da independência, bem como no tocante à região ou à federação, os mesmos nomes cobrem realidades completamente diferentes quer em termos qualitativos, quer em termos quantitativos.
Acresce que, nestes domínios, os nomes deixam de ser os conceitos da liberdade intelectual e vão-se transformando em preceitos legislativamente estabelecidos.
Bem podem as normas estabelecidas tentar dizer que são iguais realidades completamente distintas. Acontece que nem todos os Estados se confundem com Nação e muitas das entidades a que se dá o nome de região até constituem substanciais nações. A nudez forte da verdade continua a ser recoberta pela fantasia de muitos mantos diáfanos dos nominalismos científicos. O espaço do nacional do tamanho qualitativo e quantitativo de uma Alemanha não pode transpor-se mecanicamente para o nacional português. Uma land alemã só por ficção equivale a uma eventual região administrativa portuguesa. O local português, chame-se município ou freguesia, não corresponde a níveis locais luxemburgueses, mesmo com nomes paralelos. Rejeitemos a mania geometrizante que nos foi imposta pelo racionalismo iluminista.
Aliás, as palavras nação e federação não significam o mesmo para todos. Alguns têm uma atitude mística de devoção para com uma dessas palavras, enquanto outros as diabolizam. As falsas ideias claras dos que fazem uma dicotomia entre o nacionalismo e o federalismo talvez esqueça que, por exemplo, há um nacionalismo português que fala da nação como uma federação de autonomias (António Sardinha), reflectindo todo um combate histórico com a perspectiva do unitarismo e do centralismo herdados do jacobinismo, que vai de certo liberalismo não-herculanista ao republicanismo, do salazarismo ao próprio revolucionarismo do PREC:
Mas federalistas devotos da Suíça ou nacionalistas defensores da autodeterminação portuguesa, podem não estar tão distantes quanto parece de britânicos defensores da soberania do Reino Unido. A Holanda existe porque foi federação de províncias
Qualquer deles invoca a existência de uma realidade política anterior ao desabrochar do Estado Absolutista ou do Estado-Nação revolucionário. Qualquer deles resiste numa realidade política anterior ao nascimento dos Estados modernos ou das nações que nacionalizaram os modelos absolutistas.
É partindo deste modelo de nacionalismo que talvez eu possa conciliar-me com as teses fundamentais do federalismo integral ou do federalismo de associação, que constitui um dos pilares fundamentais da original Revolução Atlântica, daquela que podia ter sido desencadeada pelo processo de 1 de Dezembro de 1640, mas que acabou por dominar a Revolução Inglesa e a Revolução norte-americana.
Concordamos com o principal da mensagem, embora não com a terminologia utilizada por Karl Popper, quando ele denuncia a terrivel heresia do nacionalismo, ou mais exactamente ... do Estado-Nação ... a doutrina que continua a ser defendida e é, pretensamente, uma exigência moral no sentido de fazer coincidir as fronteiras do Estado com a fronteira do território colonizado pela nação. O erro de base desta teoria ou pretensão é a suposição de que os povos ou as nações existem antes dos Estados, como as raças, como corpos naturais, e que devem ser vestidos por medida em função do Estado. Na realidade, eles são um produto do Estado.
O problema está em que não só existem mesmo entidades políticas anteriores aos Estados modernos (v.g. os reinos), como pode haver nações-Estados, nações que ou fizeram os Estados ou querendo constituir ou construir um Estado, essas que procuram seguir os elogiados gregos da luta pela liberdade ... contra o domínio persa, onde a liberdade não é aqui uma ideologia, mas antes uma forma de vida que a torna melhor e mais digna.
Mesmo no tocante à ideia de federação, importa assinalar que se há um federalismo que exige uma espécie de dupla soberania, mantendo um espaço de autogoverno das unidades políticas de base, há, por outro, um federalismo unitarista, contrário à subsidariedade e à divisibilidade da soberania.
O primeiro é aquele espírito que perpassa nos Federalist Papers, segundo o qual os poderes delegados no novo centro devem ser poucos e definidos, enquanto os que permanecem nos anteriores centros devem ser numerosos e indefinidos.
Além disso, só podem, neste sentido, ser federalistas os que acentuam a necessidade do federalismo internacional ser acompanhado por idêntico federalismo no plano interno, porque a soberania tanto é divisível para cima como para baixo.
Este tipo de federalismo tem de ser adversário da Europa das potências e, portanto, tanto do nacionalismo coligado da nova tentativa de pentarquia, como daqueles federalistas que apenas pretendem um contrato federador perpetuador do hierarquismo.
Do mesmo modo rejeita certo federalismo jacobino que apenas vê abstractos cidadãos do todo europeu, sem assento nos corpos intermediários das nações, das regiões e das autarquias locais. Esses jacobinos federalistas que propõem uma Europa dirigida por um congresso multitudinário, como se a Europa não devesse ser uma democracia de muitas democracias, um mosaico de assimetrias, de muitas pequenas pedras que só em conjunto ganham a solidez da forma.
Insistirmos na dialéctica nacionalismo/ federalismo é continuarmos a considerar o político como algo que é exclusivamente determinado pela geografia, aquele territorialismo que reduz o político a uma tentativa de ordenação do espaço através de uma pirâmide hierárquica, onde o paroquial e o comunal se tem de integrar no círculo do provincial ou do regional e este no do nacional.
Como se no nosso tempo a mobilidade dos homens e da economia não tivesse despedaçado a solidariedade espacial das comunidades territoriais. Como se o Estado-Nação não tivesse sido ultrapassado por outras formas de organização dos homens, nomeadamente os agrupamentos temporários de interesses.
Concordamos com Guéhenno, quando este reconhece que o Estado-nação, porque prisioneiro de uma concepção espacial de poder, com essa pretensão de combinar num quadro único as dimensões política, cultural, económica e militar
Reconhecemos que vivemos na idade das redes onde a relação dos cidadãos com o corpo político entrou em concorrência com a infinidade de conexões que eles estabelecem fora dele, de maneira que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens em sociedade, surge como uma actividade secundária, isto é, como uma construção artificial desadaptada para a relação dos problemas práticos do mundo contemporâneo
De facto em lugar de um espaço político, lugar de solidariedade colectiva, não há senão percepções dominantes, tão efémeras quanto os interesses que as manipulam. Ao mesmo tempo, a atomicização e a homogeneização. Uma sociedade que infinitamente se fragmenta, sem memória e sem solidariedade, uma sociedade que não encontra a sua unidade a não ser na sucessão de imagens que os media lhe reenviam em cada semana, a partir dela mesma. Um sociedade sem cidadãos e, portanto, finalmente, uma não-sociedade.
Concordamos que o espaço deixou de ser o critério pertinente, mas continuamos a acreditar na política, exigimos o regresso à política, o regresso ao humanismo, o regresso aos valores clássicos das concepções geo-humanas.
Não queremos ser colonizados por novos impérios sem imperadores.
Queremos apenas dizer que importa dessacralizar o Estado e desdemonizar a Nação, proclamando, por exemplo que a independência nacional não tem necessariamente que coincidir com a soberania estadual. Porque, como dizia Harold Laski, a soberania nacional, na sua acepção integral, implica a faculdade de arruinar uma civilização; esta implicação não pode ser considerada como necessária para a independência nacional.
Queremos, sobretudo, uma ordem internacional e grandes espaços onde se dê lugar aos pequenos Estados e por isso acreditamos, como Friedrich Hayek, que os pequenos Estados só podem preservar a sua independência, quer na esfera internacional quer na nacional, quando exista um sistema jurídico autêntico, um sistema jurídico que assegure a invariável vigência de certas leis e a impossibilidade de a autoridade que detém o poder de as impor, o utilizar para qualquer outro fim.
Os Estados não podem continuar a ser entidades que vivam em regime de out law só porque invocam a qualidade de soberanos. Para fazermos com que a paz vença a guerra, impõe-se que a paz não seja a continuação da guerra por outros meios, impõe-se que ela não seja uma paz dos cemitérios, mas antes uma paz pelo direito.
Para o conseguirmos, basta que apliquemos à ordem dita internacional aqueles princípios que já utilizamos para as ordens internas, os princípios do Estado de Direito e da democracia.
O que precisamos é de proceder à aplicação aos assuntos internacionais da democracia, o único intercâmbio pacífico que até hoje foi inventado. O que precisamos é de evitar que as pessoas se matem umas às outras, para o que não basta exprimir um piedoso desejo, fazer uma declaração dizendo que não se deve matar, mas antes atribuirmos a uma autoridade os poderes necessários para efectivamente o evitar. O que precisamos é de dar força ao direito, também no plano internacional.
Precisamos de uma autoridade supra-nacional... muito poderosa, mas é preciso que a sua constituição seja tal que em caso algum ela se não possa transformar numa tirania. É que se o direito, no plano interno, no plano da relação entre o Estado e os indivíduos, serve para a defesa contra a tirania, também deve servir, no plano das relações internacionais, para a defesa contra a tirania de um eventualmente novo super-Estado sobre as comunidades nacionais.
Em qualquer dos casos nunca chegarmos a impedir o abuso do poder se não estivermos preparados para limitar o poder. E não há situação que menos possa preservar a democracia ou contribuir para o seu crescimento do que a situação na qual a maior parte das decisões importantes esteja nas mãos de uma organização demasiado poderosa para que o homem vulgar a possa vigiar ou, sequer, abranger. Porque quando o âmbito das medidas políticas se torna tão vasto que quase só a burocracia possui delas o conhecimento necessário, o impulso necessário cada pessoa, retrai-se, dilui-se.
Só uma política que defenda o pluralismo a nível interno, que, começando por respeitar a autonomia da pessoa, respeite a autonomia dos grupos que esta constitui, pode criar, no plano internacional, criar uma ordem que respeite as autonomias de cada unidade política nacional ou estadual.