24.2.07

A crise do Estado

A actual crise do Estado
O político, conforme a concepção do mundo e da vida a que aderimos, é tudo quanto ultrapassa o doméstico, isto é, aquilo que vai além do familiar e do económico, da oikos dos gregos ou da domus dos romanos.
O político é esse largo espaço intermédio que, crescendo a partir da aldeia, constitui a polis e que pode caminhar para a república universal, o que, aliás, acontece sempre que cada polis actua segundo o imperativo categórico kantiano, ou segundo a vontade geral de Rousseau, onde cada uma das respectivas condutas pode ser considerada como máxima universal, onde cada uma das poleis decide como se ela própria fosse a República Universal..
Logo, o político supera o Estado Soberano, tanto pelo chamado infra-estadual, como pelo próprio supra-estatal. Neste sentido, pode, e deve, haver poleis em todas as comunidades assentes no cidadanismo, sejam elas concelhos, regiões ou próprios grandes espaços, esses patamares intermédios entre os Estados a que chegámos e o Estado Mundial, conforme a definição do Professor Adriano Moreira, essa exigência da weberiana ética da convicção.
Foi esta a linha de força da nossa dissertação de doutoramento de 1990, Ensaio sobre o Problema do Estado, onde, depois de abordarmos o percurso que vai da aldeia à república universal, inventariávamos as tentativas de superação da razão de Estado pelo Estado-razão. Continua a ser este o alento que me leva a aderir àquele europeísmo que não ofende a autonomia das nações, entendidas mais como povos do que como Estados.
Julgo pertencer àquele grupo de pensamento político que não considera o Estado Soberano como o fim da história do político. Com esse já antiquado Estado Moderno, consolidado com o absolutismo, que pratica o culto da religião secular do soberanismo, dizendo que um qualquer centro político tanto deve ter uma soberania externa, a puissance absolue et perpétuelle d'une république, conforme as teses de Jean Bodin, implicando a definição de fronteiras e a definição de nacionalidade, como uma soberania interna, o poder absoluto de um soberano já dentro de uma república, conforme o ideologismo leviatânico de Thomas Hobbes, implicando o ius tractum, o ius legationis, o ius iurisdictionis e o ius bellum.
Como Francisco Vitória, consideramos que o Estado como sociedade perfeita é a comunidade que não é parcela de outra comunidade, mas que dispõe de leis próprias, de um conselho próprio e de autoridades suas. É uma comunidade perfeita e integral. Por conseguinte, não está submetida a nenhum poder exterior, pois, neste caso, não seria integral.
Como Vasquez de Menchaca, aceitamos um ius maiestatis, reconhecendo que a razão e a natureza condicionam o poder ao serviço da comunidade, pelo que aqule não é absoluto face ao direito, nem ilimitado, constituindo mero poder preeminente e universal, para dispor de tudo quanto conduza à conservação e saúde da alma e do corpo da república.
Como salienta Francisco Suarez, há um poder supremo, suprema potestas, em cada república, um poder que não reconhece acima de si nenhum poder humano da mesma ordem ou da mesma natureza, isto é, que prossiga o mesmo fim, um poder que não se confude com o dominium, devendo ser entendido como um officium, dado que ele apenas existe por causa do regnum e não do rex.
Isto é, não admitimos a existência de um poder supremo, de natureza diferente dos restantes poderes que lhe estão por baixo, considerado como fonte de todos os poderes, como detentor de uma competência das competências, e insusceptível de limitação pela moral e pelo direito.
Foi assim que surgiu a soberania dita una, inalienável, indivisível e imprescritível.
Com efeito, considero que entre um agrupamento de homens nos limites de um Estado e o agrupamento de homens na totalidade do planeta não há diferença de natureza, mas apenas de extensão.
Da mesma maneira, sufrago a ideia de que, entre o Estado e outras formas políticas ditas infra-estaduais, há mais distâncias de quantidade do que de qualidade.
Sinto por isso algumas reais afinidades com todos aqueles que, depois do holocausto e dos gulags, trataram de apelar às profundidades do libertacionismo cidadanista e à consequente autodeterminação da polis, entendida como autonomia de autonomias, onde a pedra viva da construção é o indiviso do cidadão-homem livre, esse tal ser que nunca se repete.
Essa polis que é sempre comunhão de cidadãos em torno das coisas que se amam e, onde, por sua vez, o cidadão é aquele que participa na decisão, aquele que dá o consentimento, isto é, o exacto contrário daquele que é mero súbdito de um soberano, escravo de um dono ou parcela fungível de um todo, seja ele uma nação, um Estado ou a própria humanidade.
Não posso pois deixar de comungar com todos aqueles que, reagindo contra o absolutismo, tentaram, pela via consensualista, institucionalizar formas de controlo do poder, estabelecendo travões ao mecanismo autofágico do Leviatão soberanista.
Porque no soberanismo absolutista, o poder supremo não só não admitia o controlo fáctico, da divisão e separação de poderes, como o próprio controlo normativo, nomeadamente pela não admissão do conceito de abuso do poder, esse poder supremo que, em nome de um terrorismo da razão, acabou por ser a fonte primordial do próprio terrorismo de Estado.
Também eu quero seguir a esperança de Hannah Arendt no sentido de se mudar o presente conceito de Estado e os únicos rudimentos que vejo para um novo conceito de Estado podem ser encontrados no sistema federalista, cuja vantagem é que o poder não vem nem de cima nem de baixo, mas é dirigido horizontalmente de modo que as unidades federadas refreiam e controlam mutuamente os poderes.
Um conceito que, no plano das relações externas levaria a uma autoridade não supranacional, mas sim internacional, dado que uma autoridade supranacional seria ou ineficaz ou monopolizada pela nação que fosse por acaso a mais forte, e assim levaria a um governo mundial, que facilmente se tornaria a mais assustadora tirania concebível, já que não haveria escapatória para a sua força policial global - até que ela por fim se despedaçasse.
Que no plano interno, exigiria uma nova forma de governo que é o sistema de conselho que, como sabemos, pereceu em todo lugar e em toda época, destruído directamente pela burocracia dos estados-nações ou pelas máquinas dos partidos e que passaria pela criação de uma série de espaços públicos de lugares de trocas de opinião onde seria possível um processo auto-selectivo que agruparia a elite política verdadeira de um país, mas uma elite aberta, onde poderiam entrar todos os que se interessassem o pelos assuntos públicos.
Com efeito, Arendt não advoga nem a noção de governo mundial nem a de cidadania mundial, como as defenderam certos idealismos liberais. O federalismo que propõe seria horizontalista, implicando uma dupla cidadania: a das pertenças locais, regionais e nacionais e a pertença à oikoumene, as quais seriam complementares.
Ao dizer isto, não subscrevo a propositada confusão feita entre um Estado Soberano e uma Nação autodeterminada, mesmo quando aquela decreta assumir-se como Estado-Nação. Assim, pretendo sufragar a ideia-força que tem sido proclamada pelo Professor Adriano Moreira, para quem está em crise o Estado Soberano, mas não está em crise a Nação.
Glosando este tópico, sempre poderíamos salientar que o que está em crise o Estado a que chegámos, dado que tanto está sujeito ao desafio do unificacionismo mundialista, como também ao small is beautiful dos desafios centrífugos.
Aquilo que, Adriano Moreira, na esteira de Teilhard de Chardin, qualifica como a lei da complexidade crescente nas relações internacionais, que é acompanhada por idêntica complexidade crescente na reconstrução da polis. Há divergências e convergências que só podem ser superadas, não pelo ecletismo ou pela síntese, mas apenas por aquilo que Chardin qualificava por emergência, por aquela energia que lança para cima e para dentro, na direcção de um estado cada vez mais complexo e mais centrado.