24.2.07

O Estado-razão I

O Estado-razão
O Estado Moderno pretende assumir-se como uma entidade política derivada do consentimento racional. Depois da modernidade começar por assumir-se, na sua fase primitiva de revolta como o medievalismo, como uma espécie de razão de Estado, eis que todo o esforço do jusracionalismo vai tentar transformar a mesma razão de Estado num Estado-razão.
Com efeito, o processo de formação do Estado tem a ver com o movimento racionalista construtivista, com aquele conjunto de correntes do pensamento que consideraram dever o homem voltar-se sobre si mesmo, dado que só assim ensimesmado, poderia construir de forma abstracta, através do respectivo intelecto, um sistema perfeito, um transcendente capaz de constituir um dever-ser, um padrão, uma medida para as respectivas condutas.
Que o homem, com o seu cogito, seria um subjectum actuando sobre um objectum. O tal homem que Descartes concebeu como dono e senhor da natureza e que, depois da Revolução Francesa, muito principalmente com o cientismo e com o idealismo alemão, também se assumiu como dono e senhor da sociedade.
Que o objecto perfeito seria algo de intelectivamente construível pela razão e que essa perfeição deveria ser maquinada, mesmo que Deus não existisse, conforme propunha Grócio.
Deu-se assim uma espécie de morte de Deus, de deicídio ou de disdivinização do mundo, quando se considerou que o vértice integrador do cosmos, que a cúpula da humanidade poderia ser ocupada pela nossa consciência individual, pelo pensamento de um só sujeito, voltado sobre si mesmo.
Depois, com o idealismo alemão, não só o próprio objecto passou a ser considerado como um produto da actividade do sujeito, isto é, a coisa passou a extrair-se da própria razão, (Kant), como também se atingiu a identidade do racional com o real e do subjectivo com a verdade (Hegel).
Isto é, surgiu o homem capaz de revolução, o homem capaz de construir o homem novo em nome de uma história escrita anteriormente. Por outras palavras, surgiu a hipótese de uma álgebra da revolução
Ora, se todo o real poderia ser submetido ao espiritual, se todo o mundo poderia e deveria ser comandado por um espírito do mundo, eis que cada um dos eus passou a poder dominar não só a natureza, pela ciência, como a própria sociedade, através de uma ideia prévia, pela mística do conceito criador.
Logo, cada um dos eus passou a poder levar a cabo uma dominação universal do real através de uma técnica. Passou a poder controlar-se o mundo pela ciência e a sociedade por um Estado totalitário.
Cada um dos eus passou a poder transformar o ser em vir a ser em devir em processo histórico, em movimento, em marcha racional e necessária, a caminho de um fim
De facto, este humanismo laico gerou um jusracionalismo que considerou o Estado como um espaço de razão, com extensão e movimento. Na extensão, haveria uma geometria (o território) e uma aritmética (a população). O movimento, ou a série de combinações entre esses dois elementos, desencadear-se-ia pela dinâmica do conceito de soberania, a qual era entendida como um poder absoluto e perpétuo que pairaria acima deles.
E o mundo, em vez de ser concebido como uma espécie de ser animado, passou a ser visto como uma simples máquina decomponível pela mecânica.
Uma soberania que deveria caber a um só homem, a um déspota que servisse de receptáculo às luzes da razão, um ponto que pudesse ser educado pela filosofia das luzes
Segundo as teses de Max Weber, o Estado Moderno terá surgido quando a legitimidade tradicional foi substituída pela legitimidade racional, quando a formas de consentimento não racional se sucederam formas de consentimento racional.
Se, no Ancien Régime, a fonte do respeito e da obediência consentida era a fidelidade, eis que o Estado Moderno vai invocar a competência e os burocratas passam a substituir os fiéis.
Aliás, para Weber, a legitimidade tradicional, seja a do feudalismo, baseada na relação vassálica, seja a do patrimonialismo, baseada na relação de piedade entre um paterfamilias e os seus dependentes, sempre concebeu o espaço do político à maneira de uma casa.
A política (de polis) seria, assim, o mesmo que economia no sentido etimológico do termo. Isto é, oikos+nomos, a arte de dirigir a casa, com um chefe da casa (hausherr ) ou senhor (dominus) dotado de um poder global e amplo (económico, judicial e político) sobre os respectivos dependentes.
Nestes termos, o tradicionalismo terá gerado um rei paternalista e um reino concebido como uma família extensa ou como uma casa ou um ninho, ideia que vai permanecer durante todo o Ancien Régime, mesmo quando passou a defrontar-se com a visão moderna do absolutismo estadualista.
A modernidade, enquanto o contrário do tradicionalismo, balbuciar-se-ia ao ritmo da racionalidade, da legalidade, da estadualidade, da burocracia, e do próprio capitalismo.
O primeiro marco do Estado Moderno, segundo as teses weberianas, estará pois no surgimento da distinção entre o público e o privado e na consequente distinção entre um espaço doméstico e um espaço político, um espaço da sociedade e um espaço do Estado, distinção impossível de estabelecer no patrimonialismo, onde os negócios públicos sempre se confundiram com os negócios domésticos, nomeadamente pela confusão entre governo e casa do rei.
O espaço público não vai também admitir a existência de uma propriedade privada dos meios de violência militar nem a apropriação corporativa dos meios de administração, como era timbre do feudalismo.
Isto é, com o Estado Moderno vai assistir-se à publicização tanto da posse das armas como dos meios administrativos.
Weber identifica também o Estado Moderno com um Estado Racional. Isto é, considera que um Estado Moderno é constituído pelo facto de certas pessoas orientarem a sua actividade conforme a representação mental que fazem com que esse Estado seja ou deva ser assim.
Para Weber, o senhor legal típico, o "superior", enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta as suas disposições, pelo que quem obedece só o faz como membro da associação e só obedece "ao direito".
Daí que os membros da associação, ao obedecerem ao senhor, não o fazem à pessoa deste, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objectiva, racionalmente limitada, que lhe foi atribuída por essas ordens.
E, da racionalidade, deriva a legalidade ou a normatividade, dado que as ordens são dadas em nome da norma impessoal, e não em nome da autoridade pessoal; e mesmo a emissão de uma ordem constitui a obediência para com uma norma, e não uma liberdade, um favor ou privilégio arbitrários.
Segundo o mesmo Weber o Estado Moderno seria, acima de tudo, um Estado Racional marcado pelo surgimento de uma administração burocrática.
E isto porque em todos as áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa económica, grupo de interesses, união, fundação, etc.), o desenvolvimento das formas modernas de agrupamento identifica‑se muito simplesmente com o desenvolvimento e com a progressão constantes da administração burocrática: o nascimento desta é, por assim dizer, a célula germinativa do moderno Estado ocidental.
A burocracia racional é, pois, uma ditadura do funcionário. Apoia‑se na crença na legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a autoridade.
Tem uma impersonalidade formalista, consistindo numa dominação em virtude do conhecimento que destrói os antigos sistemas de legitimação. Assim, o saber e a ideologia passam a ser os principais pontos de apoio do Estado.
Uma burocracia também se tornou possível pelo aparecimento de uma economia monetarista que permitiu ao Estado passar a pagar com regularidade aos seus funcionários, abandonando-se o anterior pagamento em espécie, por exemplo, através do aluguer da função de cobrador de impostos.