15.3.07

O Estado como produto da história

O Estado como produto da história

O Estado Moderno e Nacional, dito soberano e independente, constitui simples produto de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos, situando-se assim numa certa encruzilhada, com os seus antecedentes e os seus desenvolvimentos.
O Estado a que chegámos no mundo ocidental e europeu da actualidade é, com efeito, produto de um longo prazo de muitos séculos, pelo que detectá-lo antes dos séculos XVIII e XIX só se conseguirá se adoptarmos uma atitude maximalista e uma dogmática retrospectiva que não tenha pejo em utilizar a mística do conceito criador do racionalismo construtivista.
Estamos a falar daquele fiat nominalista do soberanismo que fala no Estado como um espaço de razão, com uma determinada extensão — a geometria do território e a aritmética de uma população - e com um determinado movimento — a dinâmica entre a população e o território conseguida pela ideia de soberania, entendida como condição prévia da estadualidade, como um poder absoluto e perpétuo, tanto na relação de um Estado com outro Estado — a soberania externa —, como na relação do aparelho de poder, ou principado, com a comunidade, sociedade ou república que aquele soberaniza — a soberania interna.
De facto, esse paradigma estadual é mero segregado de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos. E se tem como antecedentes as teorizações cronologicamente renascentistas de Maquiavel (1469-1527) e de Bodin (1530-1596), vai precisar, como conditio sine qua non, dos desenvolvimentos tanto do sistema de Hobbes, que consagrou o absolutismo e o Estado Moderno, como das revoluções demoliberais, que instituíram o projecto de Estado-nação, sublimando-se com os mestres-pensadores da ideologia alemã, tanto a dos sucessivos hegelianismos, como a da juridicizante teoria geral de Estado.
Não há dúvida que tal paradigma estadual tem no Renascimento o seu fundamental ponto de partida, mas talvez não possa extrair-se desse tempo mais do que simples sementes de estadualidade. Porque se então existe uma atracção pelo querer público central, a caminhada institucional para a construção de um centro político majestático desdobra-se pelo Estado-justiça, pelo Estado-legislação, pelo Estado-imposto, pelo Estado-administração e pelo Estado-razão. Vai ser demorada, mas sem um movimento uniformemente acelerado, dado que há sinuosos avanços e alguns recuos, num evolucionismo que toca as raias da própria anaciclose.
Mas é a partir de então que, como assinala Martim de Albuquerque, surge o grande duelo do mundo moderno — a luta entre o Direito e a Política, entre a Justiça e a Conveniência, entre a Jurisprudência e Prudência. Duelo que, na nossa época, já pós-moderna, de depois da Segunda Guerra Mundial e do fim da Guerra Fria, se reforçou, aliás, graças àquela revolução globalista que os sinais dos tempos prenunciam, onde, à dispersão dos factos e à consequente multidão das opiniões, apenas correspondem, infelizmente, parcas teorizações, por vezes enevoadas pelo charlatanismo de pretensas profecias.
Os conceitos parecem bem mais conservadores que o movimento da vida. É que eles são obra de empíricos, de empíricos sistematizadores, mas empíricos, como dizia Eric Weil, dado que pensam num certo tempo e num certo espaço, pelo que estão sempre presos às teias de um tempo que passou e podem ser provenientes de espaços exóticos, assumindo-se, deste modo, como elementos estrangeiros, no sentido de estranhos ao ambiente e só passíveis de aplicação através de operações colonizadoras.



Do Estado Moderno ao Estado a que chegámos
Se colocarmos como terminal do processo de construção do Estado a ideia weberiana de monopólio da força física legítima, não deixaremos de reconhecer que, mesmo nos estreitos limites da história europeia ocidental, tal poder de coacção nem sempre foi do centro político que nucleariza o Estado.
No próprio contexto dos oito séculos da nossa história também já o foi da vingança privada, do poder senhorial (nobre ou eclesiástico) e do próprio poder municipal. Houve, com efeito, um longo processo de construção do Estado, através da centralização e concentração do poder, que culminou no chamado Estado Absoluto.



O Estado como Administração da Justiça.
Isto é, o Estado Moderno começou por ser o Estado como Justiça, ou o Estado Justiceiro, a justiça do rei, principalmente a justiça penal, a lutar contra a vingança privada e outras formas não públicas de reacção ao ilícito penal; o rei a nomear juízes para todo o reino, dos chamados juízes de fora aos corregedores; e a determinar que quando alguém se sentisse ofendido pedisse protecção ao centro, clamando aqui d'el rei.


O Estado como Finanças
Mas a construção de um centro político, através de um centripetação contra as periferias, passou também pelo lançamento dos impostos gerais e permanentes. E aqui, diremos, como Maurice Duverger, que a história da democracia é a história do imposto.
Primeiro, porque a ideia de imposto geral determinou que se eliminassem as isenções e imunidades com que se privilegiavam determinados estamentos.
Segundo, porque o lançamento do imposto implicou a institucionalização de um mecanismo ou de um aparelho que propiciasse o consentimento do braço popular, dando origem aos parlamentos ou cortes.
Terceiro, porque os reis estabeleceram uma central recebedora de receitas públicas, circunstância que só foi possível quando se desenvolveu uma máquina exactora constituída por uma burocracia que deixou de ser paga por emolumentos, em espécie, e passou a receber vencimentos regulares, dentro de um direito à carreira.



O Estado como Legislador
Para rematar o centro, surge o Estado como Legislador, com a lei geral e abstracta a lutar contra a pluralidade dos costumes, a autonomia da doutrina e a resistência jurisprudencial.
É todo um processo de crescente predomínio da lei como fonte de direito, ao mesmo tempo que surgem os vários direitos estatais, distintos do direito romano e do direito canónico, que constituíam o direito comum europeu. Uma espiral que, se teve o seu momento alto com o absolutismo, não deixou de ser dinamizado pelo demoliberalismo quando a lei se tornou uma manifestação da volonté générale