15.3.07

O Estado a que chegámos II

No campo europeu e ocidental, importa salientar também que, depois da questão social, da segunda metade do século XIX, o instinto de crescimento do poder da criatura estadual, aliada à circunstância da mesma se conceber como cérebro social ou como órgão do pensamento social, provocou a degenerescência das estatolatrias, com uma sucessão de autoritarismos, terrorismos e totalitarismos, expressas nas variadas formas do Estado ideológico, do Estado ético e do Estado de segurança nacional.

Mas, mesmo na forma moderada de Estado de Bem-Estar, ou de Estado-Providência, com intervencionismo nos domínios do económico e do social, a mesma entidade transformou-se num Estado de Mal Estar, quando se assumiu como Estado-Empresário, Estado-Planeador e Estado-Gestor .

No contexto global da Europa, foi há pouco mais de um século, com a emergência da chamada questão social, que o débil aparelho de poder do Estado Liberalista foi obrigado a intervir numa área que, até então, era considerada como uma esfera não estadual, não pública ou não política, área que se decretava como reservada para a zona do social e do privado, onde apenas se desenrolariam os puros conflitos de interesses entre pessoas privadas.

Foi a partir de então que emergiu o chamado Estado-Providência que levou o velho Estado Liberalista a deixar de ser um simples árbitro da chamada sociedade, transitando-se do chamado Estado Abstencionista para o Estado Intervencionista.

Até então ainda tínhamos o velho État-Gendarme do laissez-faire, laissez-aller, le monde va de lui même, apenas preocupado em garantir a segurança interna e externa de uma determinada comunidade política.

Era um Estado, acima de tudo, defensivo, que protegia e garantia a ordem pública, organizando a segurança interna pela polícia, pela administração judiciária e notarial e pelos impostos, e salvaguardando a segurança externa, pelas forças armadas.

Esse velho modelo liberalista que se visionava com uma espécie de cão de guarda da propriedade, alimentado a impostos, vivendo as delícias minimalistas do ne pas trop gouverner e recolhendo as vantagens de um certo free trade no plano da internacionalização económica.
Bastava-lhe, no plano da organização, estabelecer algumas regras do jogo político, económico e social e, quando muito, arbitrar a competição, a struggle for life entre as várias forças vivas.
Tal tipo de Estado, satisfeito em ter instaurado a igualdade da lei e em ter avançado com os Códigos Civis e com as Constituições, no domínio da igualdade de todos perante a lei, não tentando estabelecer a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei.

Era, com efeito, um modelo de organização que não se preocupava com a justiça e que apenas visionava a política como mera relação directa entre o indivíduo e o soberano, como dicotomia entre os governados e os governantes.

Nessa senda, os teóricos oficiais e oficiosos de tais regimes, marcados pelo utilitarismo e pelo positivismo, consideravam que não valia a pena a pesquisa sobre o fundamento racional da justiça, nem, muito menos, a respectiva teorização, considerando tal preocupação como mera questão metafísica e, consequentemente, metapolítica. Acreditando na máxima de que as virtudes públicas seriam atingíveis pela via dos vícios privados, consideravam que o mero altruísmo intersubjectivo bastaria e que a chamada justiça não seria mais do que um simples instinto sem dignidade para se constituir em princípio social e, muito menos, no fundamento do Estado.

Um dos autores dessas correntes de pensamento proclamou mesmo que a justiça é uma noção mais ou menos vaga que os homens formam numa determinada época e num determinado grupo, uma noção que é infinitamente variável e está sempre a mudar, pelo que bastaria o mero sentimento do justo, esse sim um elemento permanente da natureza humana.

Não tarda até que um Nietzsche reduza o altruísmo a uma simples virtude das chamadas raças inferiores, porque nas raças superiores, nos superhomens, o que dominaria era o Wille zur Macht de seres egotistas e amoralistas.

Bastaria pois que os homens procurassem os seus próprios bens individuais, dado que, por acréscimo, viria o bem geral, a utilitarista maior felicidade para o maior número (the greatest happiness to the greatest number), que seria a única medida do direito e do torto (is the mesure of wright and wrong).

Aliás, para estas correntes naturalistas, o homem não seria mais do que um mero animal razoável e calculista, sempre à procura do máximo de vantagens com um mínimo de esforços, onde a justiça não passaria da sofística conveniência dos mais fortes e o direito de um mínimo de moral, coactivamente estabelecido.

Eram estas as normas fundamentais do liberalismo utilitarista e do individualismo possessivo, marcados pelas heranças de Thomas Hobbes e de Jeremy Bentham, num misto de estadualismo e de individualismo, contente com a luta de todos contra todos do homem lobo do homem, que marcou o ritmo das concepções do homem de sucesso.

Um modelo que só aqui e além era temperado pelo liberalismo ético de um Adam Smith, que fazia apelo ao chamado princípio da simpatia, ao facto de qualquer homem ter necessidade de amar e ser amado e de, por isso mesmo, procurar ser amável.

Mas, mesmo este liberalismo ético, não deixava de adoptar uma visão restrita da justiça, reduzindo-a à paz e aos impostos leves, para que o Estado pudesse proteger tanto quanto possível todos os membros da nação contra ataques, mesmo legais, de todos os outros, ou seja, manter uma legislação imparcial.

Todos sabemos como este equilíbrio teórico se desfez a partir de meados do século XIX, quando a ordem liberalista foi alvo de duas fortes contestações teóricas, provindas quer do socialismo quer da doutrina social da Igreja Católica.

Basta recordar que, no ano de 1848, não só se edita o Manifesto Comunista, como também surge, pela primeira vez, a expressão democracia cristã, ao mesmo tempo que se programava a necessidade de um Estado Social.

Mas é preciso esperar pela depressão da década de setenta do século passado para que os aparelhos de poder se transformem e que os mandamentos do free trade utilitarista entrem em decomposição.

E foi na França de Napoleão III e na Alemanha de Bismarck que ganhou forma aquilo que os franceses qualificam como État Providence e que os alemães designam por Wohlfahrstaat.
Um tentando transformar o aparelho de poder no superintendente da previdência social e tutor dos infelizes e dos que não têm quem os defenda, para utilizarmos as palavras de Jules Ferry. Outro, mais marcado pelo chamado socialismo catedrático, assumindo-se como um Sozial Staat que procurava executar uma sozial politik.

Deixa então de existir uma clara separação entre o chamado Estado e a chamada Sociedade, incluindo a economia, dado que a esfera social se repolitiza segundo Habermas. É toda a sucessão do aparelho de poder na luta contra o pauperismo, em nome da solidariedade e do mutualismo, gerando-se o Estado que se assume como higienista, como grande cofre dos seguros sociais, como o empregador das grandes obras públicas, como o gestor da segurança social e até como o planeador, quando, com o Estado keynesiano, se passa do mestre-escola que ensinava os indivíduos a ler, escrever e contar, ao pretenso grande educador dos agentes económicos.
Vai assim superar-se o velho dualismo entre a verticalidade de um Estado, entendido como a irresistível puissance dominatrice e a horizontalidade de uma sociedade civil, suposta como entidade desprovida de poder político, que fôra instaurado pelo absolutismo, com a emergência de um soberano superior à sociedade, e que o demoliberalismo primitivo continuou, substituindo o monarca absoluto pelo povo absoluto, entrou em regime de curto-circuito.

O novo modelo de Estado era, deste modo, obrigado a recuperar os clássicos fins do político e, para além da mera segurança, procurava realizar a justiça e o bem -estar.

Se, numa primeira fase, apenas nos surge um Estado Coordenador, não tarda que este caia na tentação do Estado Gestor e nas intendências merceeiras do Estado Empresário, enquanto, paralelamente, se desliza da mera planificação indicativa para o concentracionarismo da planificação imperativa.

Chega-se mesmo ao cúmulo de uma espécie de Estado Sábio, concebido como cérebro social, como órgão do pensamento social, ao mesmo tempo que se tem a ilusão de uma espécie de Estado Ético, que se pretendia definidor do bem e do mal, com uma estadual política do espírito, com novas inquisições e novas juntas censórias. Entra-se assim num crescendo de degenerescência estatolátrica, entre o autoritarismo e o totalitarismo, que faz acrescer, ao tradicional terrorismo de Estado, um mais patológico terrorismo da razão.

Contudo, o modelo de intervencionismo moderado não se propagou imediatamente a todas as comunidades políticas ocidentais. Nalguns casos, os modelos livre cambistas só entram em decomposição quando sofreram os efeitos da Grande Depressão de 1929, como aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir do New Deal de Roosevelt.

Também entre nós, só com a emergência do salazarismo é que se conjugam algumas das reformas que, meio século antes, se instauraram em França e na Alemanha.

Na verdade, o Estado Providência em português chamou-se sobretudo Estado Novo, dado que só com o salazarismo se praticou uma efectiva política social que superou a fase da casuística caridadezinha social.

Só a partir do salazarismo, quando se conciliou o catolicismo social da escola de Fréderic le Play, com o socialismo catedrático, se criou, pela primeira vez, um efectivo sistema de segurança social, bem como um modelo global de protecção laboral e de previdência social.

Aliás, só depois da Segunda Guerra Mundial, por influxo do keynesianismo e das novas práticas da social-democracia e da democracia-cristã, os dois principais contestadores da anterior ordem liberalista que, então, se assumiram como os principais gestores do novo sistema, na Europa Ocidental, o Estado de Providência e o Welfare State se tornam dominantes, em torno do tópico da economia social de mercado.

A partir de então, as democracias ocidentais assistiram a um gigantesco crescimento do aparelho de poder estadual chamado a intervir na economia, na educação, na segurança social, no emprego e nos serviços de saúde e, durante algumas décadas, esse crescimento até se foi conjugando com a estabilidade e com o próprio desenvolvimento.

Contudo, nestas duas últimas décadas, aquilo que era um Estado de Bem Estar volveu-se por todo o lado num Estado de Mal Estar. Se as reivindicações pessoais e grupais exigiram, pouco a pouco, um maior intervencionismo do aparelho de poder estadual, eis que o aumento quantitativo da respectiva área de actividade alimentada pelo imposto, se tornou num instrumento pesado que passou a ser visto como o principal impecilho das citadas reivindicações.
E quanto mais o aparelho de poder cresceu, mais a inércia o cercou, pelo que surgiram novas reivindicações como a de menos Estado, mais sociedade, falando-se na necessidade de crescentes privatizações e desregulamentações, no âmbito da proclamada libertação da sociedade civil.
Com efeito, reconheceu-se que o novo modelo de Estado sofria de raquitismo. Que criou estruturas adiposas de gordura sem adequado músculo e calcificada ossatura, o que poria em causa as articulações e a própria estrutura óssea do corpo social.

Contudo, ao mesmo tempo que se falava em menos Estado relativamente aos intervencionismos anteriores, eis que logo se clamava por um melhor Estado, isto é, por uma nova intervenção da esfera pública em domínios como os da qualidade de vida, do ambiente, do regionalismo e da descentralização, visando uma resposta às novas questões sociais.

Mais uma vez, eis que, entre nós, a história era marcada por outros ritmos. O velho Estado Novo salazarista, que aplicara, ao Portugal dos anos trinta e quarenta, algumas das reformas bismarckianas, não se adaptara às mudanças dos anos setenta com a tentativa de Estado Social de Marcello Caetano, que, no fundo, tentava instaurar entre nós, os modelos de economia social de mercado do imediato pós-guerra, é abalado pelo processo revolucionário.

Assim, em 1974-1975, eis que, ao mesmo tempo que se levam ao clímax as sementes da sociedade de consumo, herdadas do marcelismo do tempo das vacas gordas, se acresce, ao estatismo salazarista, o colectivismo gonçalvista.

O socialismo revolucionário teve aliás como aliciante uma espécie de socialismo de consumo, marcado pelo slogan dos ricos que paguem a crise, utilizando, sobretudo, as cenouras do salário mínimo e do emprego artificial, que servem de alibi para o chicote das nacionalizações e das ocupações.

Depois, a social-democracia pós-revolucionária, democrática e pluralista, a dos governos PS e PSD, apenas pôde reformar no contexto das conquistas da revolução, consagradas pela Constituição e pela lei ordinária.

Surgiu assim um Welfare State à portuguesa, produto de um activismo, a Revolução, e de duas inércias, o que estava antes de 1974 e o oportunismo pós-revolucionário, que desencadeou uma espécie de neocorporativismo dos gestores do sistema, sempre de acordo com os sucessivos situacionismos, os quais cederam a uma ideologia tecnocrática assente numa espécie de oportunismo prático, marcado pelos anacronismos utilitaristas do homem de sucesso e por uma sonora mas vaga invocação da modernização, esse travesti que, invocando algumas pistas da requentada tese do fim das ideologias, acabou por ensaiar o impossível de tornar doméstico o que sempre foi público e de mercantilizar o que deve ser político.

No fundo, uma espécie de liberalismo a retalho que se guardou na pipa daqueles socialismos cesaristas que sempre agravaram o nosso ancestral capitalismo de Estado.

É que só pode haver melhor Estado e mais sociedade quando se abandonar o dualismo Estado-Sociedade, pelo regresso à política e o regresso à justiça.

O Estado a que chegámos produto destas contradições, não é apenas marcado pelo crescimento quantitativo do aparelho de poder, mas também por uma alteração qualitativa dos respectivos processos, provocada sobretudo pela repolitização da esfera social que, conforme salienta Jürgen Habermas, escapa à distinção entre 'público' e 'privado', ao mesmo tempo que o próprio sistema jurídico privado teve de receber um crescente número de contratos entre o poder público e pessoas privadas.

Há, portanto, que ultrapassar as classificações formais e que detectar tentações de estatolatria em todos os modelos organizacionais do poder político.

Para utilizarmos as palavras de Bertrand de Jouvenel, eis que o Estado e o Indivíduo não estão sozinhos na Sociedade, existindo outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços e como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos.

O Estado a que chegámos, com efeito, tem uma actuação global face à sociedade, não se limitando a intervir em aspectos parcelares da mesma, dado que procurou garantir a integração existencial (Daseinsvorsorge), assegurando as condições vitais da existência de que o homem carece, para utilizarmos palavras de Ernst Forsthof.

Por outro lado, surgiu uma radical alteração das formas de representação política, com a emergência de novas formas de corporatismo, com esse sistema particular de representação dos interesses que se opõe ao pluralismo e ao sindicalismo, com esse sistema de representação dos interesses no quadro do qual os actores são organizados num número limitado de categorias funcionais, obrigatórias, disciplinadas, hierarquizadas e ao abrigo de qualquer concorrência; elas são reconhecidas e admitidas (senão criadas) pelo Estado e beneficiam dum monopólio de representação na medida em que eles conseguem como contrapartida em controlar a selecção dos seus dirigentes o tipo de procuras que se exprimem e o apoio que recebem.

O Estado Moderno, quando abandonou o jacobinismo individualista, viu-se privado de algumas tradicionais atribuições, tanto em proveito dos trusts e cartéis dos patrões capitalistas, como dos sindicatos dos operários e restantes trabalhadores por conta de outrem, para além das ordens profissionais das chamadas profissões liberais.

Acontece, inclusive, que algumas formas de poder local, desde as regiões aos municípios, que, teoricamente, são uma forma de manifestação do Estado, se consideram como poderes autónomos que apenas gravitam em torno de um poder central, assumindo-se de forma sindicalista como uma espécie de contrapoder.

O Estado a que chegámos gerou o crescimento de uma burocracia, por vezes já não burocrática, que levou ao aparecimento de uma espécie de Estado dentro do Estado, dado que se a sociedade já não é autónoma, se já não se mantém auto-regulando-se como uma esfera que precede e subjaz o Estado, então, o Estado e a sociedade já não conseguem manter a anterior relação fixada segundo o modelo da base e da super-estru­tura.

Surgiu assim um Estado que é neocorporativo a nível da sociedade e que é um Estado de partidos a nível da participação no poder político, um Estado em tempo de poliarquia.
A questão fundamental do Estado a que chegámos, deste Estado que pretendendo ser de Bem-Estar, se tornou de Mal-Estar, está no facto de apenas continuar a ginasticar o respectivo corpo sem se preocupar com a procura de um espírito são.

Julgo que a respectiva reforma só pode ser executada quando se retomarem as teorias fundamentais da polis como entidade que tem a justiça como estrela polar.

Como já salientava Aristóteles, só pode haver política quando os homens compartilharem em comum o sentido da justiça, porque a justiça é coisa da polis, é o princípio de ordem de uma comunidade política.

Só quando retomarmos a justiça como o fim da política, como o bem político por excelência, só quando a reconsiderarmos como a primeira virtude das instituições sociais podemos vencer este mal-estar prático e teórico, em cuja encruzilhada nos encontramos.

Porque, como proclama John Rawls, a Justiça está para a política, assim como a verdade está para o pensamento.