2.3.07

O Estado à procura do político

No princípio era a polis
A polis, na Grécia antiga, é o ponto de partida para uma forma hodierna que, grosso modo, corresponde àquilo a que damos o nome de Estado.
Uma entidade que, em Roma, tem como sucessora a civitas, donde emerge a res publica, e que, na Europa dos séculos XII e XIII, se transforma em regnum, para, a partir da Renascença, se volver progressivamente em Estado, essa palavra nova, inventada por Maquiavel.

Trata-se de uma linha evolutiva que, desde sempre, teve algumas formas paralelas, derivadas e até degeneradas. Na Grécia antiga, as várias cidades que invocavam uma origem comum assumiam-se como genos, como uma entidade marcada por uma certa comunidade étnica, origem remota daquilo que hoje qualificamos como nação. Em Roma, a partir do principado, a res publica é usurpada pelo Imperium, ponto de partida para aquela categoria que, na Idade Média, será qualificada como a monarquia universal, sobre a qual conformará o modelo soberanista e territorialista do absolutismo, esse que leva a que se hipostasie o centro político.
Na Idade Média, contudo, emergem também as cidades, comunas ou burgos que, em português, tiveram o nome de concelhos, desde os rurais aos urbano-mercantis, entidades que ora se assumem como entidades livres, carregadas de politicidade, ora se tornam elementos do reino, como repúblicas menores a caminho de uma república maior, mas demonstrando a hipótese de um corpo político infra-estadual. E no nosso tempo, eis que se volta à procura de um político supra-estadual, pela construção dos grandes espaços, uma espécie de patamar intermédio, visando a clássica ideia de república universal.






A parábola de Aristóteles
Comecemos pela imaginação dos fundadores da teoria política, sigamos a parábola de Aristóteles sobre a origem da polis, desse para quem a poesia até seria mais verdadeira do que a história. Porque vale a pena mergulharmos no tempo da imaginação, dos criadores e das parábolas.



Com efeito, segundo as metáforas de Aristóteles, o político não é nem o familiar, de cunho ainda naturalístico; nem o doméstico, marca económica; nem o étnico, a origem do modelo nacionalista; nem sequer a perspectiva dos que sobrevalorizam a união comercial de vários povos.


Aristóteles fala na polis como uma agregação de aldeias, onde a aldeia era um conjunto de casas e a casa, uma família extensa, assente no gregário animal das relações homem — mulher e homem — mulher — filhos.

Fase naturalística
Primeiro, assinala a existência de uma fase naturalística ou animalesca, marcada pela lógica do rebanho e pelos princípios contraditórios do prazer e da dor. Trata-se da relação entre o homem e a mulher, visando a conservação da espécie, a que se segue a relação dos pais com os filhos, tendo em vista a sobrevivência e a educação destes.

Fase social
Segue-se a fase social, da racionalidade técnica, quando se institucionaliza a casa (oikos). Uma comunidade complexa, abarcando três tipos de relações: primeiro, a relação do homem e da mulher, para a conservação da espécie; segundo, a relação dos pais com os filhos, tendo em vista a sobrevivência e a educação destes; terceiro, a relação do chefe da casa, enquanto unidade económica, com os respectivos dependentes.
Nesta fase, já marcada pela cultura, por aquilo que o homem acrescenta ao naturalístico, entramos na fase do social, do homem como ser diverso dos restantes animais, porque é um animal comunicacional, que através do discurso (logos) é capaz de expressar o útil e o inútil e não apenas o prazer e a dor, como sucede aos restantes animais. Assim,a comunidade económica é a primeira etapa da racionalidade, embora ainda da mera racionalidade técnica.

Polis
Só numa terceira fase, quando várias casas se juntam numa aldeia e várias aldeias se congregam numa polis é que se atinge a fase da racionalidade ética, do zoon politikon, onde a procura do bonum honestum, da justiça, supera o mero bonum utile do animal social. E o homem inventou o político para deixar de ter um dono, para deixar de obedecer a outro homem e passar a obedecer a uma abstracção.


O conceito de casa engloba, portanto, tanto o de comunidade familiar propriamente dita, a associação entre marido e mulher e entre o pai e os filhos, como o de comunidade económica, onde Aristóteles incluía a relação entre o senhor, ou o dono, e o escravo. Segundo as suas próprias palavras, a primeira união necessária é a de dois seres que são incapazes de existir um sem o outro: é o caso daquela que se estabelece entre o macho e a fêmea tendo em vista a procriação (...) uma tendência natural para se deixar, depois de si, um ser semelhante a si. A segunda é a união daquela cuja natureza é a de mandar com aquele cuja natureza é a de ser mandado, tendo em vista a conservação em comum ([1]).

A casa, ou família em sentido amplo, formou-se destas duas comunidades: do homem e da mulher, do senhor e do escravo. É uma comunidade constituída pela natureza para a satisfação das necessidades quotidianas, sendo constituída por aqueles que comem o mesmo pão ou que se aquecem com o mesmo fogo, como o próprio Aristóteles evoca, citando autores anteriores.
A casa é assim entendida como uma sociedade mais ampla que a dos parentes biológicos, dado que nela também se incluem os escravos. E o mesmo Aristóteles, acentuando o carácter económico desta comunidade, não deixa de assinalar que, nas famílias pobres, em vez dos escravos, estão os bois.

A aldeia
Depois, vem a aldeia (kome), a união de várias casas e de várias famílias, que continuando a ter em vista a satisfação de necessidades vitais, já não se reduz apenas à satisfação das necessidades quotidianas. Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a primeira comunidade formada por várias famílias tendo em vista a satisfação de necessidades que já não são puramente quotidianas. E que parece ser uma extensão da família. Só depois da associação de várias aldeias pode surgir a polis.

Genos

Contudo, Aristóteles não diz que todas as formas de associação de aldeias geraram uma polis, introduzindo, na sequência da exposição, a referência a uma entidade composta de aldeias, mas qualitativamente diferente: a genos, a mera associação de famílias, que uns traduzem por estirpe, outros por nação, não faltando sequer quem a refira como pátria ([2]).
Aristóteles refere que a genos subsiste ao lado das poleis, definindo aquela como a reunião de elementos submetidos ao regime monárquico. Porque o rei está para a família extensa como o pai para a família, dado que, em ambos os casos, o elemento de ligação é o parentesco entre os seus membros. Acrescenta, no entanto, que, na origem, as poleis eram governadas por reis.
De facto, a polis teve remotas origens na genos, onde todos os membros descendiam de um antepassado comum ou tratavam de adorar a mesma divindade. Uma genos, dirigida por um chefe, detentor da palavra divina, dona de um código de justiça familiar, a themis.
Uma genos que, entretanto, se sedentarizou, instalando o palácio do chefe e os santuários na parte alta (a acropolis), enquanto, na parte baixa (asty), existiam as aldeias. Com efeito, só quando se deu o desenvolvimento da agricultura e do comércio a parte baixa ganhou relevo, surgindo então o fluído nome de polis para qualificar o conjunto. Isto é, a polis, mistura da acrópole com a campina, tem origem numa inicial pátria militar instalada numa cidadela, com preponderância da nobreza militar e do sacerdócio, uma entidade que só atingiu a dimensão de autarcia quando se aliou com a campina agrícola das redondezas, quando a paz permitiu segurança no cultivo dos campos e no doce comércio.

Diferença entre polis e genos
A congregação de várias aldeias, segundo Aristóteles, pode conduzir tanto à polis como à genos, que são qualitativamente diferentes, apesar da polis ter origem na genos. Com efeito, segundo a parábola, foi com a instalação de um chefe na acrópole, na cidadela unificadora, que se congregaram em torno desta várias aldeias, ao mesmo tempo que ao lado do palácio do chefe, se ergueu o altar para a adoração da divindade comum.

A união pela origem comum
Com efeito a genos é sempre uma união pelo parentesco, pela origem comum, tem a ver com a estirpe, donde se nasce (natio). Pelo menos, os respectivos membros julgam-se descendentes de um antepassado comum, de um pai-fundador.

Uma família extensa
Em segundo lugar, a genos assume-se como uma família extensa e está dependente de um chefe hereditário que é também uma espécie de pai em ponto grande. O que se explica pela circunstância das populações congregadas em torno da acrópole se terem sedentarizado, pela agricultura e pelo comércio, juntando a campina das aldeias e dos arredores.

Uma divindade comum
Em terceiro lugar, a genos tende a adorar a mesma divindade. Assim, a polis nunca perdeu o símbolo da genos inicial, embora se tenha alargado, quando juntou a guerra ao doce comércio, quando juntou aos deuses matriciais o otium e o negotium.


Da racionalidade técnica à racionalidade ética
Se a existência da família em sentido estrito — a relação masculino/feminino e relação progenitores/ filhos — reflecte uma etapa primária de agregação, marcada pela sensação de prazer e de dor, idêntica àquele instinto de conservação da espécie que também possibilita aos animais viverem em rebanho, eis que a emergência da família extensa, no sentido clássico de casa, com um chefe da casa, parentes e escravos, já tem uma raiz económica, no sentido de oikos-nomos, de administração da casa.
Aqui, o homem, ultrapassando o animalesco, já é marcado por uma racionalidade técnica, já é um sócio que se agrega em nome de considerações técnicas e práticas sobre o útil e o prejudicial, já desenvolve um pensamento retrospectivo e prospectivo ao serviço de interesses individuais e de carácter grupal, já tem em vista a constituição de uma associação pragmática de fins, de uma comunidade económica, de uma aliança de guerra e comércio, já procura uma vida mais agradável e segura. Só que se impõe algo mais do que a mera racionalidade técnica. A polis exige também uma racionalidade ética, exige a representação comum do bom e do justo, exige a consideração de um interesse comum no bem e no mal, no direito e no não direito ([3]).
A polis não é apenas junção societária, não é apenas proximidade, contiguidade e forma de vida conjunta. A polis é, sobretudo, koinonia, comunhão, comunidade, consciência de um destino comum, fé comum, comunhão em torno de coisas que se amam. Exige a justiça (dike), mas também pressupõe amizade (philia), aquelas formas de mobilização afectiva que só podem combater a apatia se assentarem numa educação que também seja formação (paideia).



A complexidade da polis
Só depois de referir a casa, a aldeia, e a genos Aristóteles trata da polis, assumindo a respectiva aparição de forma complexa. A polis, apesar de ser uma associação de várias aldeias, como estas são associações de várias casas, constitui, contudo, algo de qualitativamente diferente da anterior sucessão, dado ter em vista outro nível de fins.
Não visa apenas as necessidades vitais, não segue apenas a linha do parentesco, procurando um fim bem diverso, o bem viver. Não é também um conjunto maior que a aldeia, já que a genos, apesar de poder ser maior, não é uma entidade política, mas uma entidade étnica. Só a polis é, neste sentido, uma associação completa e perfeita.
Por outras palavras, Aristóteles reconhece a existência de comunidades antecedentes da polis e que estão na base desta, aquilo que podemos qualificar como sociedades pré-políticas, e que se formaram pelo instinto natural. Mas não deixa de referir que, paralelamente à polis, continuam a existir comunidades, como a genos, cuja união não é marcada pelo bem que constitui o fim da polis.
A genos, por exemplo, se não é uma associação política, por não ser uma associação de homens livres e iguais, também não é algo de pré-político. Do mesmo modo, não seriam políticas as uniões estabelecidas por tratados de comércio ou por tratados de segurança entre várias cidades.
Seguindo as próprias palavras de Aristóteles, temos que os homens não se associam tendo em vista apenas a existência material, mas principalmente tendo em vista a vida feliz (de outro modo uma colectividade de escravos ou de animais seria uma polis, o que seria, aliás, uma coisa impossível, porque tais seres não têm nenhuma participação na felicidade nem naquela forma de vida que se funda na vontade livre), e também não se associam para formarem uma simples aliança contra qualquer injustiça, da mesma forma não o fazem tendo somente em vista as trocas comerciais e as relações de negócios de uns com os outros ([4]).
Com efeito, não poderia ser qualificada como polis qualquer espécie de união de povos por intermédio de tratados comerciais — todos os povos ligados entre si por tratados comerciais, seriam como cidadãos de uma só polis — ([5]), como sucederia com a esfera de influência dos cartagineses.
Nas uniões de povos por intermédio de tratados visando matérias comerciais ou por de segurança, se podem proibir-se as injustiças recíprocas, não há magistraturas comuns a todas as partes contratantes, dado que cada uma conserva os seus próprios magis­trados, não se preocupando com a moralidade dos cidadãos de outra polis. Na verdade, o único objecto destes acordos é evitar que os cidadãos de um país causem dano aos de outro. Todas as poleis que, pelo contrário, se preocupem com uma boa legislação, prestam uma especial atenção em tudo o que diz respeito à virtude e ao vício entre os respectivos cidadãos. Neste sentido, Aristóteles observa que a polis não é uma simples comunidade territorial, estabelecida com o fim de se impedirem as injustiças recíprocas e de se favorecerem as trocas. Sem dúvida, estas são as condições que devem ser necessariamente realizadas se queremos que uma polis exista; contudo, mesmo que se reúnam todas estas condições, nem por isso existe uma polis. A polis é a comunidade do bem viver para as famílias e os agrupamentos de famílias, tendo em vista uma vida perfeita e independente. A polis tem em vista uma vida em felicidade, tem de ser obra da amizade, tem de ter em vista uma vida perfeita e independente, pois existe para que possa realizar-se o bem, não tendo apenas como objectivo a vida em sociedade ([6]).







Conclusões actualistas
Da parábola de Aristóteles, podemos retirar algumas conclusões bem actualistas. Primeiro, que o social é mais do que o mero animal. Segundo, que o político é mais do que o social. Terceiro, que o político assenta no social. Com efeito, o político é sempre comunhão, o político é justiça, amizade e paideia, essa educação que é formação. Mais: o político vai além do autárquico, exigindo um bem-viver. Não é apenas o sobreviver, que exige a submissão. Impõe um viver que é viver com. Impõe que lutemos para continuarmos a viver. Logo, só a polis é uma associação completa e perfeita.
Com efeito, há sociedades prépolíticas, formadas pelo instinto naturalístico. Há sociedades parapolíticas, que apenas visam a racionalidade técnica. Há formas de um gregário metapolítico e a latere do próprio político.
Neste sentido, a polis, ou, se quisermos, o Estado, distingue-se sempre da genos, ou, se quisermos, da Nação. Porque a polis é sempre uma associação de homens livres e iguais.
Também as uniões para a segurança e o comércio não são verdadeiramente políticas. Nelas não há uma moralidade comum, porque a preocupação que as fundamenta é a comutação, o alterum non laedere, o impedir que cada um cause dano ao outro. Enquanto a polis tem sempre em vista a felicidade.




Ambivalência
O modelo clássico da polis foi sempre marcado pela ambivalência. Se, por um lado, ela visa atingir a autarquia, aquele espaço de auto-suficiência que lhe permite satisfazer as necessidades vitais dos respectivos membros, também existe para bem viver.
Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a polis, formada de início para satisfazer apenas as necessidades vitais, existe para permitir bem viver (eu Zein) ou viver segundo o bem ([7]).
É esta dupla exigência que transforma a polis numa sociedade perfeita. Não apenas porque visa a autarquia, o viver, mas porque, além do viver, exige o bem viver.
E esta exigência de bem viver que faz da polis uma forma de associação humana totalmente diferente das associações infrapolíticas. Porque, se todas as formas de associação humana visam um determinado bem (agathon), aquela que visa um bem maior tem de ser superior à que visa um bem menor.
Haverá assim uma comunidade que é a mais alta de todas e a que engloba todas as outras. Esta comunidade é aquela a que se chama polis, é a comunidade política [8].
Parte-se do princípio que a politicidade tem de ser poder mais liberdade, tem de ser governação mais participação, porque não há polis que não tenha como base a cidadania.
A polis tem de ser suficientemente grande para poder atingir a auto-suficiência, para conseguir um poder de governação, mas também tem de ser suficientemente pequena para permitir a liberdade e a participação. Logo, não pode ser grande demais nem pequena demais. Tem de ser harmonia. Tem de crescer na medida compatível com a sua unidade. Tem de ser suficiente na sua unidade.
A polis aparece, pois, como um conjunto geo-humano e geo-histórico, como associação de pessoas e comunidade de gerações, como um todo que tanto é autarcia como comunidade, que tanto é auto-suficiência como comunhão. Como a mistura de uma terra, de um povo e de uma ideia, onde a ideia faz da multidão um povo e trata de espiritualizar um determinado território, e não o inverso, como naquela degenerescência que ora leva à territorialização de um povo, ora à proprietarização de uma ideia.
Assim se chega ao conceito romano de civitas, entendida como um agrupamento de homens livres, estabelecidos num pequeno território, todos dispostos a defendê-lo contra qualquer ingerência estranha e, sobretudo, onde todos detêm uma parcela de poder, bem diversa daqueles modelos políticos territorialistas, onde um só homem exerce o poder duma forma absoluta e exclusiva ([9]).



A civitas romana, base do projecto europeu do político
É a partir desta realidade que Cícero concebe a civitas como uma multitudo que visa uma communio, mas onde a comunhão de interesses não pode deixar de ser uma comunhão de fins.
Contudo, sempre se considera que esse conjunto tem de ser movido por um consensus iuris, por um consenso de direito onde o direito positivo, o direito posto (positum), o direito estabelecido na cidade, não pode deixar de se nortear pelo direito natural, entendido como a lei que está inscrita no coração dos homens. Porque se o direito positivo é contingente, mutável e localizado no tempo e no espaço, importa que este seja sempre corrigido por um direito eterno, imutável e universal.

Res publica igual a res populi
É neste sentido que Cícero dá o nome de respublica àquilo que os gregos chamavam polis, considerando-a como coisa do povo, como a sociedade formada pelo amparo do direito e com o fim da utilidade comum. Uma res publica que soma a libertas do populus, à auctoritas do Senado e à potestas dos magistrados, esse regime misto, com separação e fusão de poderes, harmonicamente dinamizados.


Do particular para o universal
A partir desta síntese estóica, greco-romana, a polis concebeu-se como algo que parte do particularismo, da diversidade e da diferença para atingir o universal, para a descoberta do infinito pela atenção ao finito (J. Hirschberger), para a noção de que o universal é o local menos os muros, conforme as palavras de Miguel Torga.
A partir de então, conforma-se a essência do projecto europeu e ocidental do político, esse processo de resolver a oposição entre o uno e o diverso, de maneira diferente de certa metafísica oriental, onde, quase sempre, se suprime o segundo dos termos, através de uma ascese que apaga a diferença e o próprio indivíduo, a fim de fundar o uno sem distinção, como nos ensina Denis de Rougemont.

O universal não tem de ser o geral
Essa viagem do particular para o universal, impõe que não se reduza o universal aquilo que apenas é geral. Porque o universal não tem de ser o geral. Tem de resolver a oposição entre o uno e o diverso sem apagar a diferença. Tem de manter a tensão criadora das coisas vivas, que permitir que se atinja o universal pelo particular, que se chegue à transcendência pela imanência, que se encontre a essência na existência, admitindo um transcendente situado, um dever-ser que é.


A partir de então, o pensamento clássico do político assumiu que devem manter-se os dois termos da oposição, não em equilíbrio neutro, mas através de uma tensão criadora, daquela mesma que falava Heráclito: o que se opõe, coopera, e da luta dos contrários deriva a mais bela harmonia.
Porque só se atinge a transcendência pela imanência. Porque todo o transcendente só pode ser um transcendente situado. Porque toda a essência só se realiza através da existência. É o tal existencialismo que não é anti-essencialista e o tal laicismo que não é deicida.




As degenerescências
Saliente-se, contudo, que a poliarquia da república romana é, depois, expropriada pelo princeps, sendo esmagada pelo peso do Imperium, primeiro, quando, com Diocleciano, a partir de 284, o Imperator se assume como dominus e deus e, depois, quando, com Constantino, a partir de 311, a cidade-Estado volta a ser cidade-Igreja. Quando deixa de haver separação entre o que era de César e o que era de Deus e a autonomia da política é absorvida pela moral religiosa, principalmente com o chamado agostinianismo.
Com efeito , a res publica é sucessivamente degenerada pelo imperium e pela teocracia. Com o princeps começa o modelo da usurpação; com o dominado, o despotismo, a que, depois, acresce o constantinismo, ponto de partida para o bizantinismo, a teocracia e o cesaropapismo, quando a a cidade-Estado volta a ser cidade-Igreja.

O regresso da política no século XIII
Contudo, o modelo poliárquico, de matriz aristotélica e estóica, renasce e é, desta semente que emerge a perspectiva medieval do reino e da cidade, as novidades pós-feudais e pós-imperiais que emergem nos séculos XII e XIII, tendo em São Tomás de Aquino o principal teórico.
Dá-se, então, a restauração e a cristianização da ideia de política, reagindo-se assim contra a expropriação do político pelo império e da autonomia da política pela moral religiosa, como acontecera durante a vigência do constantinismo e do agostinianismo.
A polis voltou a ser unidade de ordem e não unidade substancial, onde o todo deixou de significar fusão das partes que o compõem num ser unidimensional, num totum continuum, num simpliciter unum. A polis é vista como mera essência relacional, como simples unidade de relação.
Por outras palavras, consagrou-se a circunstância de não poder haver polis sem autonomia dos cidadãos, a fonte do consentimento, a origem imediata de todo o poder político. Porque a unidade engloba os cidadãos, mas sem os absorver, sem os diluir, sem os totalitarizar. Porque a unidade não é unicidade, tal como o todo não é o totalitário. A unidade é unidade na diversidade, diversidade de funções, mas harmonia para um fim unitário, um bem comum mobilizante.
A polis é apenas forma que se dá a uma determinada matéria: os indivíduos, tornados pessoas. É mais um processo do que uma coisa, é mais relação e estratégia do que objecto e reificação.


Laicização e racionalização do político
Há duas ideias básicas na perspectiva do político, segundo o tomismo. Primeiro,o laicismo e o racionalismo. Quando se coloca o consentimento dos membros da cidade na origem do poder, quando se proclama que o poder vem de Deus, mas atrvés do povo.
Em segundo lugar, a concepção da cidade como uma unidade de ordem e não como uma unidade substancial. Passa-se, asim, do holismo ao orgânico e supera-se o atomicismo pela ideia de unidade, teorizando-se o bem comum.

Do holismo ao orgânico
Em São Tomás, o político é concebido como algo de orgânico, onde a unidade engloba os cidadãos, mas não os absorve,ao contrário das perspectivas holísticas, que admitiam a fusão de todos os membros num ser único.

Do atomicismo à unidade
Em segundo lugar, supera-se a mera perspectiva atomística, quando se considera que o todo, por causa do fim que lhe dá unidade, é maior do que a mera soma das partes.

Bem comum
Em terceiro lugar, a civitas é perspectivada como uma unidade de relação, como uma unidade de ordem, como o todo de ordem, contrariamente ao indivíduo, considerado como a única entidade que tem substância própria. Assim, a cidade é vista como forma de que os indivíduos são matéria, podendo concluir-se que o político não é uma coisa, é um processo, que o poder não é uma coisa, é uma relação.

Unidade não é unicidade
Neste sentido, a unidade não é unicidade, tal como o todo não é totalitário. A unidade é unidade na diversidade, pois, apesar da diversidade de funções, há harmonia que resulta da procura de um fim unitário, de um bem comum mobilizante.

A ideia de comunidade perfeita
Daqui resulta uma conclusão voltada para o interior da cidade: a comunidade perfeita é entidade suprema que engloba outras comunidades.

A diversidade de cidades
Já quanto às relações exteriores da cidade, conclui-se que há uma diversidade de cidades, resultante de uma diversidade de fins.


É este o principal contributo de São Tomás, quando fala na civitas como a união estável de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, um fim que identifica com o bem comum, entendido como a síntese da ordem e da justiça.
A civitas aparece como uma perfecta communitas, como uma unidade auto-suficiente, como uma entidade suprema, dado englobar outras comunidades, como as famílias e as aldeias, mas que apenas constitui uma unidade de ordem, um totus ordinis, onde existe aquela gubernatio que permite conduzir convenientemente o que é governado a um determinado fim.
Pode, a partir de então, proclamar-se que há uma diversidade de cidades resultante da diversidade de fins e das maneiras diferentes que cada cidade tem de tender para o mesmo fim. Isto é, podem escolher-se fins diferentes e até há maneiras diferentes de tender-se para o mesmo fim.




Consensualismo
Estão assim criadas as bases que serão desenvolvidas por todo o posterior consensualismo, defensor da concepção racional do político, onde confluirão tanto a neo-escolástica peninsular, de cariz católico, com destaque para as teses de Francisco de Vitória e Francisco Suarez, como certo pensamento protestante pós-teocrático, de Johannes Althusius a John Locke.
A polis é tão só uma sociedade perfeita porque tem um fim perfeito. É uma entidade superior que engloba várias entidades inferiores. Uma entidade perfeita que tanto pode cingir entidades imperfeitas como várias entidades perfeitas.
Porque a política é aquilo que faz simbiose, que faz unidade na diversidade. Como diz Althusius, é o que permite a comunicação mútua daquilo que é necessário e útil para uso e consórcio da vida social.
Não basta o que é comum aos animais, o que faz com que haja rebanhos, importa a racionalidade técnica, dos que procuram o bem-estar e a segurança. Mas essa racionalidade técnica, comum às sociedades imperfeitas, como a casa e a empresa, não chega. Serve para os sócios resolverem a questão do bonum utile, não chega para se atingir o bonum honestum da racionalidade ética, só passível de cidadania.
Os homens, com efeito, consociam-se de maneira diversa. De maneira simples ou privada, contratual ou societária, onde há comutação. Mas também se consociam de maneira complexa, mista ou pública, para constituírem comunidades perfeitas, norteadas pela justiça global, pelo que, à justiça comutativa, tem de acrescentar-se tanto a justiça distributiva como a justiça social.
A forma complexa, mista ou pública de consociação passa a ser aquela onde muitas consociações privadas ou simples se unem, como salienta o mesmo Althusius, pelo direito de poder comunicar e participar o útil e necessário para a vida do corpo constituído.
Eis a polis, a tal consociação universal, pública e maior, continuando Althusius. O tal corpus politicum et mysticum que, segundo Suarez, resulta de um específico acto de união para uma associação moral, a tal comunidade mística, unida por um fim, uma comunidade politicamente organizada e não apenas uma multidão inorgânica.
A polis não é apenas societas, pensada através de um omnes ut singuli, referido por Francisco Suarez, ou pela vontade de todos de Rousseau, onde cada um exprime a sua vontade pensando nos respectivos interesses. A polis é algo mais: é a vontade geral, de Rousseau, onde cada um se exprime pensando nos interesses do todo, é um omnes ut universi, conforme as palavras de Suarez.
Na polis há uma especial vontade ou um comum consentimento para se reunir um corpo político, para voltarmos a Francisco Suarez. Surge assim uma polis, a sociedade de vida, em parte privada, natural, necessária, espontânea, em parte pública, segundo as palavras de Althusius.
Não caem estas correntes nos vícios soberanistas do absolutismo. Para elas, a polis é uma sociedade perfeita, perfeita em relação a si mesma, por ser dotada de uma autonomia intrínseca — por ter uma plenitude de direito e de poder, por possuir um governo — e de uma autonomia extrínseca — e perfeita relativamente a sociedades idênticas.


Política igual a justiça
A consociação privada apenas visa a justiça comutativa, apenas se situa a nível da comutação e da troca, típica das comunidades imperfeitas, das relações das partes com as partes, onde deve ser marcante o alterum non laedere.
Algo de qualitativamente diversa é a consociação complexa, mista ou pública que visa uma comunidades perfeita. Mas esta não é perfeita porque nasce de cima para baixo. Esta não é apenas o vertical, mas antes o que circula de forma descendente e ascendente.
Visa, por um lado, o a cada um conforme as suas necessidades (relações do todo com as partes), isto é a justiça distributiva do suum cuique tribuere.
Visa, por outro, o decada um conforme as suas possibilidades (as relações das partes para com o todo), isto é, a justiça geral ou social, o honeste vivere.

Res publica, consociação pública maior
Utilizando a terminologia de Althusius, a res publica aparece como uma consociação pública maior, como a união de muitas consociações mistas ou públicas. Assim, consociações mistas ou públicas existem antes da consociação pública maior. E as mesmas consociações, todas juntas, até têm mais poder que o próprio poder soberano. Aliás, o que as unifica é o fim, isto é, o direito e não o poder do soberano. O que não impede a consociação pública maior de ser mista, mista de público e de privado.

Povo, sociedade, contrato
Polis é povo, societas e contrato. É povo politicamente organizado, é comunidade e é instituição. É sociedade organizada, dotada de um poder supremo, tendo um status politicus ou civilis (uma estrutura política), assumindo-se como civitas (um corpo íntegro, um conjunto de indivíduos associados) e sendo uma res publica (a administração dos assuntos comuns da governação), como assinalava Espinosa. É, como dizia Rousseau, acção do todo sobre o todo, o tal ser comum feito de uma multidão de seres razoáveis. É, nas palavras de Aron, a colectividade considerada como um todo. Ou, para subirmos à perspectiva de Kant, um Estado-razão, o tal contrato original pelo qual todos os membros do povo limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo como membros da comunidade, o povo olhado como universalidade.
Impõe-se, portanto, que cada polis, segundo os termos do mesmo Kant, seja res publica, potentia e gens, que seja, ao mesmo tempo, comunidade, autonomia e nação, que seja associação de pessoas, com poder, mas enraizada numa comunidade de gerações. Não basta o contrato, mas não se exclui o contrato. Exige-se algo de mais, mas sempre através de um plebiscito de todos os dias praticado em torno das coisas que se amam.




([1]) ARISTÓTELES, A Política, cit., I,2, 1252a, pp. 24-25.
([2]) Se natio vem de nascer, patria vem de patrius, isto é, terra dos antepassados. Ver o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, I, p. 286.
([3]) OTTFRIED HÖFFE, Justiça Política. Fundamentação de uma Filosofia Crítica do Direito e do Estado, trad. port., Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 219-223.
([4]) ARISTÓTELES, A Política, cit., 1280a, pp. 206-207.
([5]) Idem, p. 207.
([6]) Idem, p. 207.
([7]) ARISTÓTELES, A Politica, I, 2, 1252b, p. 27.
([8]) Idem, I, 1, 1252a, p. 22.
([9]) Definição de SEBASTIÃO CRUZ, Direito Romano, I, Coimbra, 1984, 4ª ed., p. 58.