24.2.07

A crise do Estado II

Segundo o ensino do Professor Adriano Moreira, há movimentos de convergência mundialista, ao mesmo tempo que se aceleram processos de divergência e de dispersão e dessa complexidade surgem novas formas políticas, desde os grandes espaços aos órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão.
Dito de outra forma: a planetização dos fenómenos políticos, a marcha para a unidade do mundo, como se nota na existência de uma multiplicação das relações mútuas, vem acompanhada por uma multiplicação quantitativa e qualitativa dos centros de decisão.
Isto é, as relações internacionais são complexas. E as coisas complexas são precisamente aquelas onde há simultaneamente convergência e divergência.
A convergência, a planetização dos fenómenos políticos nota-se na marcha para a unidade do mundo. Problemas como a fome, a explosão demográfica, a domesticação da energia atómica são todos eles indivisíveis.
A divergência nota-se na multiplicação das relações internacionais. Se, por um lado, se assiste a uma multiplicação quantitativa (aumentam os contactos através das velhas formas) e a uma multiplicação qualitativa (surgem novas formas de contactos) das relações internacionais, eis que também se dá uma proliferação dos centros de decisão que se manifesta no aumento do número de Estados (cerca de duas centenas), no aparecimento de novas entidades supra-estaduais, bem como no surgimento de ONGs resultantes da internacionalização da vida privada.
Está em crise o modelo de Estado que, de cima para baixo, do soberano para os súbditos, pretendia construir uma nação. Está em crise o modelo de construção do político onde se dá o primado do poder sobre a liberdade, do Estado-aparelho-de-poder sobre o Estado-comunidade, do principe sobre a república.
Utilizando as categorias de Maquiavel, diremos que estão em crise os principados, não estão em crise as repúblicas.
Mas se utilizarmos termos paralelos diremos que estão em crise os soberanos não estão em crise as nações
Está em crise o modelo absolutista do político, esse que continua o processo dos déspotas esclarecidos como Luís XIV, Frederico o Grande da Prússia, Pedro o Grande da Rússia ou o nosso Marquês de Pombal. O modelo que permaneceu e se reforçou com o Estado jacobino da Revolução Francesa, principalmente de 1792 a 1796, e que constituiu um dos primeiros modelos de um Estado terrorista que vai ser continuado por Napoleão, Lenine, Mussolini, Hitler, Estaline, Mao ou Pol Pot.
Esse que tratou de executar adversários pela simples razão de pertencerem a um grupo diferente considerado como contra-revolucionário, esse que reinventou o delito de opinião e que aumentou a massa dos prisioneiros de consciência; esse que praticou massivamente o genocídio; que utilizou como forma de governar a confiscação e que transformou o cidadão em carne para canhão.
Está em causa o modelo de Estado que tentou praticar a engenharia social para a construção de um homem novo.
Está em crise o poder, não está em crise a liberdade. O poder nasceu para se discutir, a liberdade para o discutir. Como dizia Hannah Arendt, enquanto a independência nacional, ou seja, a isenção de dominação estrangeira, e a soberania do Estado, ou seja, a pretensão de total e ilimitado poder nas relações externas, estiverem identificadas.
Julgo não estar em crise o modelo de nação-Estado, isto é, da Nação que pretende resistir como polis ou o da nação que pretende autodeterminar-se. Aquele modelo que, em nome do small is beautiful, pretende que a cada nação corresponda um Estado, que o universal possa atingir-se através da diferença.
Como a este respeito observa Dusan Sidjanski, estes fenómenos enfraquecem a tarefa dos Estados sobre o comportamento de outros grandes actores que saem teoricamente do seu controlo.
Com efeito, a revolução globalista levou à crise do Estado Soberano, principalmente daquele modelo que era representado pelas grandes potências nascidas com o absolutismo. Principalmente dos Estados herdeiros dos grandes projectos de império.
Mas perante o gigantismo do Estado grande demais, eis que também se manifesta a fascinação pelo singular cultural e nacional. Eis que face à tendência para a uniformização e para a imitação de um modelo comum. manifesta-se a vontade de se distinguir pela herança histórica e pela identidade nacional ou regional. Face à massa e ao gigantismo, desenham-se novos valores, a qualidade e a beleza do detalhe, da miniatura. Há portanto lugar a novas formas de nacionalismo.
Como dizia Albert Camus, a Europa tem vivido sempre nesta luta entre o meio-dia e a meia-noite, uma confrontação entre o equilíbrio e o desequilíbrio, as lutas entre a ideologia alemã e o espírito mediterrânico, traduzindo-se em a comuna contra o Estado, a sociedade concreta contra a sociedade absolutista, a liberdade reflectida contra a tirania racional e, finalmente, o individualismo altruísta contra a colonização das massas.
Ou como Almada Negreiros proclamava que o Norte e o Sul da Europa são a eterna divergência das duas interpretações possíveis que ligam o particular ao geral: o Norte representando o sentido do particular para o geral; o Sul o do geral para o particular.
Está em crise a autenticidade do conceito de soberania, não está em crise a nação. Está em crise o modelo absolutista, não está em crise a perspectiva libertacionista. Estão em crise os nacionalismos que se construíram, e constróem, à imagem e semelhança dos estadualismos, os nacionalismos que, esquecidos da libertação nacional, tendem a estadualizar o político.
Está em crise a conjuntural modernidade do Estado, não está em crise o permanecente do político. Estão em crise os Estados que se despolitizam, não estão em crise os Estados que se repolitizam, que se revigoram no cidadanismo da polis, da democracia e da iuris societas. Está em crise a razão de Estado, não está em crise o Estado-razão, o Estado de Direito Democrático.
Está em crise o modelo de polis que não se vivifica nas actuais circunstâncias da revolução globalista e da revolução do localismo. Não está em crise a dimensão estadual a que pode dar-se a autenticidade da cidadania.
Dizer que está em crise o Estado Soberano, dizer que o conceito pós-renascentista não serve, significa tentarmos outras formas de procura de um impulso integrador para a organização do político.
Neste sentido, subscrevemos as palavras de Jean Monnet, num discurso de Janeiro de 1968, proferido no Sarre: estou chocado pela diferença entre os princípios que aplicamos dentro das nossas fronteiras e os que aplicamos fora delas. No seio das fronteiras nacionais, os homens já há muito encontraram e aperfeiçoaram meios civilizados para fazer face aos conflitos de interesses; já não precisam de recorrer à força para de se defenderem. As leis e as instituições estabeleceram a igualdade de Estados. Mas fora das suas fronteiras, as nações ainda se comportam como os indivíduos se comportariam se não houvesse leis nem instituições. Todas essas nações, em última instância, se apegam à soberania nacional - isto é, todas essas nações se reservam o direito de julgar a sua própria causa.
A soberania é isso mesmo: o princípio da manutenção da vingança privada nas relações internacionais, o reconhecimento da guerra, a negação de que o poder internacional possa ter como limites o direito e a moral, dado que continua a prevalecer o tem razão quem vence, isto é, que a razão da força é mais forte que a força da razão.
Conforme escrevia Harold Laski, depois da primeira guerra mundial, temos de reconhecer que os Estados devem ser julgados exactamente de acordo com os mesmos princípios que as igrejas, os sindicatos ou as associações científicas. Com relação às pessoas que os constituem, os Estados não constituem pessoas morais, vivendo num plano diferente ou submetidas a princípios diferentesPorque não existe ... diferença qualitativa entre os interesses ou os direitos dos Estados e os interesses ou os direitos das outras associações ou indivíduos. Os seus fins são dos mais vulgares, humanos como todos os outros; têm por missão assegurar a felicidade dos seus membros.
O Estado nada mais é que uma das formas do político, humano, demasiado humano e não é pelo facto de o armarmos de um princípio também inventado pelos homens, o da soberania, que ele passa a ser o advento de Deus à terra. A não ser que consideremos a guerra como a suprema expressão da civilização, quando ela não passa de uma das muitas formas de resolução de conflitos.
E voltando a Laski, sempre diremos que o começo da guerra marca o fim da liberdade; a guerra faz recuar indefinidamente qualquer possibilidade de resolver equitativamente um conflito.
Está em crise aquele conceito de poder que considera que a guerra pertence à essência dos Estados, rejeitando a existência de um árbitro final nas questões internacionais e negando a hipótese teórica de uma paz pelo direito, quando considera, afinal, que a paz é uma continuação da guerra por outros meios.
Rejeitando as consequências absolutistas do soberanismo, da omnipotência do Estado e do próprio pessimismo antropológico, de herança maquiavélica e hobbesiana, em que acabaram por se aliar jacobinismos e corporativismos, há, no entanto, quem, na actualidade, prossiga uma linha de pensamento que parte de Aristóteles e Cícero, passa por São Tomás de Aquino e se vai revigorando com Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Johannes Althusius, Comenius, John Locke, Montesquieu e outros mais do nosso tempo que permanecem fiéis à perspectiva pluralista do político.
Pensam assim todos aqueles que tentaram atingir a modernidade sem uma solução de ruptura face ao renascimento que significou certa Baixa Idade Média, precisamente aquele que viu emergir os reinos e, depois, os próprios descobrimentos. Foi assim com o nosso humanismo do século de Camões, foi assim com a Inglaterra da continuidade lockeana, com os Países Baixos de Althusius, com a Suíça confederal e com essa revolução evitada que foi a independência norte-americana...
Muitos são os subsolos filosóficos que se cruzam neste pluralismo contemporâneo, onde será difícil encontrar a proclamada dicotomia entre liberais e socialistas ou entre conservadores e progressistas.
Linhas de matriz liberal, de marca moderada e ética, podem retomar Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e outros, como o krausismo liberdadeiro que, entre nós, acaba por preponderar, a partir de Alexandre Herculano e Vicente Ferrer Neto Paiva.
Linhas de matriz socialista podem subir do federalismo de Proudhon ao guildismo, às teses britânicas do self-government e ao cooperativismo.
Linhas do conservadorismo podem retomar certas perspectivas consensualistas do tradicionalismo, reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do solidarismo, do institucionalismo e do tradicionalismo e reagir contra a omnipotência do soberanismo, do centralismo e do concentracionarismo.
Também algumas teses progressistas podem assentar nas perspectivas da sociedade sem Estado, do socialismo utópico, embrenhar-se de autogestão e procurar no small is beautiful, as classicissímas teses da polis de há vinte e cinco séculos.
À direita e à esquerda, pluralismo, individualismo, democracia, funcionalismo, divisão e separação de poderes, podem irmanar-se na defesa daquele antiquíssimo regime misto que tanto rejeita o atomicismo como o colectivismo.
À direita e à esquerda, através do humanismo cristão, católico ou protestante, ou do humanismo laico, neoclássico ou modernizante, muitos se irmanam numa concepção anti-absolutista do político, através do ideal histórico concreto de consenso, da política como arte de unir os contrários ou os simples divergentes pela persuasão e pelo consentimento.
Seguindo a lição de Hannah Arendt, diremos que o soberanismo aceita a velha ideia de poder absoluto acompanhou a ascensão do Estado-nação soberano europeu, cujos primeiros porta-vozes foram Jean Bodin, na França do século dezasseis, e Thomas Hobbes, na Inglaterra do século dezassete, mas que existe, no entanto, uma outra tradição e um outro vocabulário não menos velhos e veneráveis. Quando a cidade-estado de Atenas chamou à sua constituição de isonomia, ou quando os romanos disseram ser a civitas a sua forma de governo, tinham em mente um conceito de poder e lei cuja essência não se fiava na relação ordem-obediência e não identificava poder com domínio ou lei com ordens.
Aquele conceito que levou os federalistas norte-americanos como James Madison (1751-1836), a dizer que todos os governos repousam na opinião e à elaboração de uma constituição como a norte-americana onde foi possível considerar que o tratados externos são parte integrante da lei do país porque, como dizia o juiz James Wilson em 1793, o termo soberania, para a Constituição dos Estados Unidos, é completamente desconhecido.
Se o soberanismo adopta o modelo do contrato social de Hobbes, onde surge uma versão vertical do contrato reduzido ao pactum subjectionis que leva a um monopólio do poder, segundo o qual todo o indivíduo celebra um acordo com a autoridade estritamente secular para garantir a sua segurança, por cuja protecção ele renuncia a todos os direitos e poderes, haveria uma outra versão do mesmo contrato, a de Locke, marcado pela versão horizontal onde o elemento marcante já seria o prévio pactum unionis. Aqui já não é o indivíduo que estabelece o governo, mas antes o intermediário da societas, entendida no sentido latino como aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo. Assim, se o pactum unionis implica a limitação do poder de cada indivíduo deixa intacto o poder da sociedade; a sociedade então estabelece um governo, mas, como dizia John Adams (1735-1826) sobre o firme terreno de um contrato original entre indivíduos independentes
Esta seria uma nova versão da antiga potestas in populo. Esta seria a única forma de governo em que o povo é mantido pela força de promessas mútuas e não por reminiscências históricas ou homogeneidade étnica (como no estado-nação) ou pelo Leviathan de Hobbes que "intimida a todos" e desta forma une a todos.
A linha soberanista que vai do absolutismo ao modelo bonapartista de Estado-nação, ao considerar a soberania como o fim da história do político, como o cume unidimensionalizador do corpo político, veio destruir a necessária visão pluralista da polis.
Esse intervalo de modernidade sempre impediu que se concebesse o político como todo o espaço de sociabilidade institucional que ultrapassa o doméstico, não querendo admitir que pode haver político antes da estruturação vertical, hierarquista e piramidal dos Estados a que chegámos e que tem de haver político para além dos mesmos.
O político é plural e insinua-se através de sucessivos e heterogéneos estratos. O político é o que ultrapassa a aldeia e que só acaba na república universal. Porque há várias sociedades políticas, várias sociedades perfeitas que se acumulam, umas mais superiores e mais perfeitas, outras menos superiores e menos perfeitas.
Logo, que só pode resolver-se o problema pela via do princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada sociedade perfeita tem de ser autónoma, mas nem por isso deixa se inserir-se no âmbito de outras sociedade perfeitas, também autónomas.
Cada sociedade política é autónoma, isto é, tem poderes para estabelecer as suas próprias regras, tem um poder supremo de acordo com a sua própria natureza, um poder supremo na sua própria ordem, um poder supremo da exacta natureza do poder da sociedade mais superior onde se insira.
Assim sendo, havendo essa repartição originária do poder político por todos os corpos sociais perfeitos, não há uma soberania una, inalienável, indivisível e imprescritível. O próprio poder supremo é plural, contratualizável, divisível e susceptível de extinção.
O poder político não está apenas concentrado na cabeça do corpo político. Pelo contrário, reparte-se originariamente, constituintemente, por todos os corpos sociais dotados de perfeição.
Deste modo, cada corpo social tem um certo grau de autonomia para a realização da sua função. E o corpo político não passa de uma instituição de instituições de um macrocosmos de macrocosmos sociais, de uma rede de corpos sociais, de um network structure.
Porque há uma diversidade que apenas se une pela unidade de fim, pela unidade do bem comum que a mobiliza.
Portanto, uma sociedade de ordem superior não deve intervir na esfera de autonomia de uma sociedade de ordem inferior, da mesma maneira como uma sociedade de ordem inferior também pode transferir funções e consequentes poderes para uma sociedade de ordem superior.
Porque o princípio da subsidariedade é o mesmo que o princípio da subjectividade da sociedade. Da consideração de cada sociedade como um sujeito e não como um objecto ou como um contrapoder.
Que vários níveis de sociedades políticas podem coexistir por sobre a mesma multitudo. Porque sendo a polis mera essência relacional, cuja essência substancial é o indivíduo, pode este desdobrar-se participativamente, conforme os interesses e os bens comuns que lhe dão comunhão com os outros.
Dizer isto é aceitar o clássico princípio da polis, do respectivo entendimento como um conjunto de cidadãos.
Cada unidade substancial da polis, isto é, cada indivíduo, possui sucessivos status, do status libertatis ao status familiae, do status civitatis, da comunidade de base territorial ao estatuto de cidadão do género humano, como membro da comunidade internacional, da civitas humana ou civitas maxima.
Dizer que, em nome da dimensão social da pessoa, há o familiar e o profissional, mas que, em nome da dimensão política da mesma pessoa, há o municipal, o regional, o nacional e o universal, tentando conceber a democracia como aquele regime misto que não se esgota no estatismo e que até o deve superar, renegando tanto o individualismo, hobbesiano ou jacobino, como o corporativismo hierarquista que, contra-revolucionariamente, procurou antepor-se-lhe.
De certa maneira, retomar a perspectiva de algum federalismo integral, mas compensando-o com a visão consensualista do contrato social.
Isto é, pondo o assento tónico no pactum unionis, considerando como fundamental o pacto que constitui a aliança horizontal da societas desvalorizando o pactum subjectionis do contrato de governo, perspectivado como instrumental, dado que este teria de conservar intacto o poder da sociedade.
Seguindo, algumas das linhas de pensamento de Otfried Höffe, diremos que importa superar certos preconceitos da filosofia política da modernidade que pensa em categorias de amigo-inimigo, de decisäo e sua efectivação, de comando e obediência e tende a uma absolutização do direito positivo e do Estado.
Não está em crise aquele modelo de Estado que nasce da comunidade para o aparelho de Poder. Não está em crise a nação politicamente organizada, o aparelho de poder que brota da libertação da comunidade.
Está em crise o modelo de centralização soberanista que foi do absolutismo, despótico ou democrático, o qual continua a querer homogeneizar a diversidade das várias comunidades naturais.
Está em crise o modelo de Estado que, transformando os indivíduos do direito natural em cidadãos do direito positivado, tratou de estatizar todos os direitos originários e naturais e decretou que não poderia existir qualquer espécie de intermediação de corpos políticos entre o mesmo indivíduo e o centro do aparelho de poder estadual.
Esse modelo que expropriou as comunas, as regiões, os grupos profissionais e outros poderes ditos periféricos, que decretou a impossibilidade de uma pluralidade de centros de poder soberanos submetidos a um mesmo ente coordenador.
Está em crise aquele modelo absolutista que procurou territorializar um determinado espírito, que transformou a polis em propriedade, isto é, aquilo que é ser, em simples coisa que se pode ter, essa historicidade de um território, essa territorialização de uma história.
Foi esse o modelo, maioritariamente dito como Estado-nação, que procurou impor sobre todo o espaço do seu território a mesma língua, os mesmos costumes, um exército permanente baseado na conscrição, um sistema de ensino público único e que tratou de esatabelecer para todas as colectividades territoriais menores o mesmo modelo de pronto-a-vestir administrativo, atomicizando o espaço e homogeneizando as divisões segundo um modelo único.
Não está em crise a nação libertadora ou resistente, sobretudo aquela que continua a ser marcada pelo small is beautiful, que, conforme Jacob Burckhardt, existe para que haja no mundo um cantinho de terra onde o maior número de habitantes possam gozar a qualidade de cidadãos no verdadeiro sentido da palavra ... o pequeno Estado não possui nada a não ser a verdadeira e real liberdade pela qual compensa plenamente no plano ideal as enormes vantagens e até o poder dos grandes Estados
Se a nação garantir a presença no poder global dos elementos particulares - permanecendo distintos e reconhecíveis, se proceder a uma simbiose sem confusão nem desaparição das especificidades, como Pierre Duclos considerava a essência do federalismo.
Essa qualquer solução que tome por regra o respeito pelos dois termos antinómicos em conflito, compondo-os de tal maneira que a resultante da sua tensão seja positiva, ou, segundo os termos da teoria dos jogos, determinando um optimum no qual se conciliem os dois maxima contraditórios , conforme os ensinamentos de Denis de Rougemont.
Esse modelo que diríamos radicalmente pluralista, fiel aquele antiquíssimo conceito de arte política, como a arte de governar pela persuasão e pelo consentimento, pelo juntar e conciliar contrários, tecendo os opostos.
Recuperando o princípio da subsidariedade, da subjectividade da sociedade, e remontando ao pluralismo inicial das próprias teses iniciais do político.
Assim se fará conciliar a região com a liberdade nacional, com as nações que são liberdade e libertação. Com esse fervilhar espontâneo de sociedades diversas que rodeiam as pessoas sob a unidade viva de uma tradição histórica e de uma cultura particularizada na sua expressão, mas virtualmente universal, com a nação como uma realidade mista e não cristalizada: na base, receptáculo de uma multiplicidade de sociedades que não lhe cabe digerir, mas sim manter vigorosas; no cume, se não é uma comunidade no sentido perfeito da palavra, é, pelo menos, já comunitária, laço flexível e vivo entre a universalidade espiritual, a única que cada pessoa como tal pode alcançar e comportar, e as sociedades biológicas que cercam e retêm o indivíduo, como expressava Emanuel Mounier.
Algo que está enraizado no chão físico da origem do grupo e no chão moral da história, como assinalava Jacques Maritain.
A polis só pode ser entendida como a tensão dialéctica entre o poder e a liberdade, tal como o direito só pode conceber-se como o diálogo da justiça com a força. A polis só pode ser entendida como o espaço de diálogo entre a decisão e a participação, entre a governação e a cidadania, como a exigência de unidade na diversidade, como a harmonia dos discordes.
Este entendimento pluralista da polis, este perspectivar a polis, não como uma sociedade, mas como um mosaico de sociedades vivas. De sociedades imperfeitas, ou consociações simples ou privadas, e de sociedades complexas, já de carácter público. Este entendimento da polis como um macrocosmos de macrocosmos e microcosmos políticos e sociais, como um mosaico de espaços de cidadania, isto é, de espaços de participação política na decisão.
Só assim pode superar-se a tentação corporativista, para a qual cada grupo tem uma posição pré-definida, pelo a priori de um preceito, no modelo de participação na decisão e onde o próprio conceito de representação obedece a um regulamento estatuidor.
Os grupos, as consociações, para o corporativismo, são sempre concebidos como corpos intermediários entre o indivíduo e o cume do Estado, negando-se o individualismo, a espontaneidade da cidadania e comprimindo-se a política que deixa de ser entendida como um espaço de conflitualidade criadora, de luta entre os grupos, com a consequente negociação e troca.
Porque o essencial na política é sempre o afrontamento, o ajustamento, a dinâmica, através de constelações que se fazem e desfazem e de uma pluralidade de centros de decisão.
Só assim pode superar-se a tentação jacobinista, simultaneamente individualista e estatista, onde o individualismo se transforma num cidadanismo estatizante que proíbe a existência de qualquer espaço de participação política entre a individualidade e a estadualidade e onde também se nega a hipótese de um político supra-estadual.
Se o sistema político tem de ser entendido como um sistema autónomo e aberto, como um sistema que tem relações de troca com o seu ambiente, não pode deixar de ser concebido como autónomo e aberto tanto face aos subsistemas sociais do seu interior, como face aos subsistemas políticos, também marcados pela autonomia e pela abertura que o integram.
Isto é, o espaço do político não pode ser monopolizado pelo estadual nem ser subjugado pelo soberano, dado que no chamado infra-estadual também circula o político. Mesmo quando o estadual coincide com o nacional, o sistema político não deixa de ser um complexo de sistemas políticos e de subsistemas sociais.
A região, dentro do espaço estadual, também é um sistema político, dotado do seu próprio circuito de decisão, não podendo ser reduzida ao simples circuito administrativo. Em certo sentido, é tão sociedade perfeita quanto o próprio Estado. Pode não ter ius legationis, ius tractum, ius jurisdictionis e ius bellum, mas tem povo, território e poder político, tem um poder de decisão que já não é apenas técnico, pois que decide sobre fins, sendo dotada dos meios necessários para os alcançar. Isto é, tem liberdade, na escolha de fins, e poder para os executar.
Quem advogar uma visão pluralista da organização do político, onde cada estrato seja sempre uma manifestação do indivíduo, ao contrário do que defendia o corporativismo; quem advogar que cada estrato não pode diluir-se piramidalmente no todo soberano, ao contrário das teses jacobinas, tem de repudiar a perspectiva do político como o unidimensional e o homogéneo e tem de defender a necessidade de cada estrato poder desenvolver as respectivas potencialidades.
O reforço das autonomias, neste sentido, não é o contrário das liberdades nacionais. Com uma nação que não se meça pelo Estado-aparelho-de-poder, mas sim por uma metapolítica de identidade que pode não coincidir com os Estados a que chegámos. Com a necessidade de uma comunidade de significações partilhadas, com um povo reunido por hábitos complementares de comunicação, como diria Karl Deutsch.
Porque uma só nação pode ainda hoje estar repartida por vários Estados. Porque uma só nação pode ter no seu seio várias regiões. Porque nem sempre as regiões coincidem com as nações. Porque nem sempre o sentimento de uma comunidade pelas coisas que se amam coincide com a racionalidade do Estado.
Nação é sobretudo comunhão em torno das coisas que se amam, é civitas amoris, é o tecer espontâneo de laços no plano das articulações laterais e verticais por onde se gera uma polis.
Direi que talvez existam realidades políticas diferentes dos Estados-nações, dos Estados que querem, através do aparelho de poder, construir nações. Talvez existam realidades políticas que são o preciso inverso, realidades políticas a que chamaremos Nações- Estados.
Direi que Portugal é uma dessas raras entidades de nação-Estado que, portanto não tem que temer a plena liberdade das suas regiões, dado que elas, felizmente, não constituem nações sem território, povos sem Estado ou pretensas nacionalidades.
Por aqui pode passar o consenso, mesmo que se chame federação. Por aqui pode passar a divisibilidade da soberania, a descolonização interna e a pluralidade das pertenças. Não continuemos a traduzir em calão juridicidades feitas para outras realidades, pensadas para outros medos, sofridas por outras culturas.
Julgo que não vale a pena confundir os nomes com as coisas nomeadas. Com efeito, no caso do Estado e da nação, da soberania e da independência, bem como no tocante à região ou à federação, os mesmos nomes cobrem realidades completamente diferentes quer em termos qualitativos, quer em termos quantitativos.
Acresce que, nestes domínios, os nomes deixam de ser os conceitos da liberdade intelectual e vão-se transformando em preceitos legislativamente estabelecidos.
Bem podem as normas estabelecidas tentar dizer que são iguais realidades completamente distintas. Acontece que nem todos os Estados se confundem com Nação e muitas das entidades a que se dá o nome de região até constituem substanciais nações. A nudez forte da verdade continua a ser recoberta pela fantasia de muitos mantos diáfanos dos nominalismos científicos. O espaço do nacional do tamanho qualitativo e quantitativo de uma Alemanha não pode transpor-se mecanicamente para o nacional português. Uma land alemã só por ficção equivale a uma eventual região administrativa portuguesa. O local português, chame-se município ou freguesia, não corresponde a níveis locais luxemburgueses, mesmo com nomes paralelos. Rejeitemos a mania geometrizante que nos foi imposta pelo racionalismo iluminista.
Aliás, as palavras nação e federação não significam o mesmo para todos. Alguns têm uma atitude mística de devoção para com uma dessas palavras, enquanto outros as diabolizam. As falsas ideias claras dos que fazem uma dicotomia entre o nacionalismo e o federalismo talvez esqueça que, por exemplo, há um nacionalismo português que fala da nação como uma federação de autonomias (António Sardinha), reflectindo todo um combate histórico com a perspectiva do unitarismo e do centralismo herdados do jacobinismo, que vai de certo liberalismo não-herculanista ao republicanismo, do salazarismo ao próprio revolucionarismo do PREC:
Mas federalistas devotos da Suíça ou nacionalistas defensores da autodeterminação portuguesa, podem não estar tão distantes quanto parece de britânicos defensores da soberania do Reino Unido. A Holanda existe porque foi federação de províncias
Qualquer deles invoca a existência de uma realidade política anterior ao desabrochar do Estado Absolutista ou do Estado-Nação revolucionário. Qualquer deles resiste numa realidade política anterior ao nascimento dos Estados modernos ou das nações que nacionalizaram os modelos absolutistas.
É partindo deste modelo de nacionalismo que talvez eu possa conciliar-me com as teses fundamentais do federalismo integral ou do federalismo de associação, que constitui um dos pilares fundamentais da original Revolução Atlântica, daquela que podia ter sido desencadeada pelo processo de 1 de Dezembro de 1640, mas que acabou por dominar a Revolução Inglesa e a Revolução norte-americana.
Concordamos com o principal da mensagem, embora não com a terminologia utilizada por Karl Popper, quando ele denuncia a terrivel heresia do nacionalismo, ou mais exactamente ... do Estado-Nação ... a doutrina que continua a ser defendida e é, pretensamente, uma exigência moral no sentido de fazer coincidir as fronteiras do Estado com a fronteira do território colonizado pela nação. O erro de base desta teoria ou pretensão é a suposição de que os povos ou as nações existem antes dos Estados, como as raças, como corpos naturais, e que devem ser vestidos por medida em função do Estado. Na realidade, eles são um produto do Estado.
O problema está em que não só existem mesmo entidades políticas anteriores aos Estados modernos (v.g. os reinos), como pode haver nações-Estados, nações que ou fizeram os Estados ou querendo constituir ou construir um Estado, essas que procuram seguir os elogiados gregos da luta pela liberdade ... contra o domínio persa, onde a liberdade não é aqui uma ideologia, mas antes uma forma de vida que a torna melhor e mais digna.
Mesmo no tocante à ideia de federação, importa assinalar que se há um federalismo que exige uma espécie de dupla soberania, mantendo um espaço de autogoverno das unidades políticas de base, há, por outro, um federalismo unitarista, contrário à subsidariedade e à divisibilidade da soberania.
O primeiro é aquele espírito que perpassa nos Federalist Papers, segundo o qual os poderes delegados no novo centro devem ser poucos e definidos, enquanto os que permanecem nos anteriores centros devem ser numerosos e indefinidos.
Além disso, só podem, neste sentido, ser federalistas os que acentuam a necessidade do federalismo internacional ser acompanhado por idêntico federalismo no plano interno, porque a soberania tanto é divisível para cima como para baixo.
Este tipo de federalismo tem de ser adversário da Europa das potências e, portanto, tanto do nacionalismo coligado da nova tentativa de pentarquia, como daqueles federalistas que apenas pretendem um contrato federador perpetuador do hierarquismo.
Do mesmo modo rejeita certo federalismo jacobino que apenas vê abstractos cidadãos do todo europeu, sem assento nos corpos intermediários das nações, das regiões e das autarquias locais. Esses jacobinos federalistas que propõem uma Europa dirigida por um congresso multitudinário, como se a Europa não devesse ser uma democracia de muitas democracias, um mosaico de assimetrias, de muitas pequenas pedras que só em conjunto ganham a solidez da forma.
Insistirmos na dialéctica nacionalismo/ federalismo é continuarmos a considerar o político como algo que é exclusivamente determinado pela geografia, aquele territorialismo que reduz o político a uma tentativa de ordenação do espaço através de uma pirâmide hierárquica, onde o paroquial e o comunal se tem de integrar no círculo do provincial ou do regional e este no do nacional.
Como se no nosso tempo a mobilidade dos homens e da economia não tivesse despedaçado a solidariedade espacial das comunidades territoriais. Como se o Estado-Nação não tivesse sido ultrapassado por outras formas de organização dos homens, nomeadamente os agrupamentos temporários de interesses.
Concordamos com Guéhenno, quando este reconhece que o Estado-nação, porque prisioneiro de uma concepção espacial de poder, com essa pretensão de combinar num quadro único as dimensões política, cultural, económica e militar
Reconhecemos que vivemos na idade das redes onde a relação dos cidadãos com o corpo político entrou em concorrência com a infinidade de conexões que eles estabelecem fora dele, de maneira que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens em sociedade, surge como uma actividade secundária, isto é, como uma construção artificial desadaptada para a relação dos problemas práticos do mundo contemporâneo
De facto em lugar de um espaço político, lugar de solidariedade colectiva, não há senão percepções dominantes, tão efémeras quanto os interesses que as manipulam. Ao mesmo tempo, a atomicização e a homogeneização. Uma sociedade que infinitamente se fragmenta, sem memória e sem solidariedade, uma sociedade que não encontra a sua unidade a não ser na sucessão de imagens que os media lhe reenviam em cada semana, a partir dela mesma. Um sociedade sem cidadãos e, portanto, finalmente, uma não-sociedade.
Concordamos que o espaço deixou de ser o critério pertinente, mas continuamos a acreditar na política, exigimos o regresso à política, o regresso ao humanismo, o regresso aos valores clássicos das concepções geo-humanas.
Não queremos ser colonizados por novos impérios sem imperadores.
Queremos apenas dizer que importa dessacralizar o Estado e desdemonizar a Nação, proclamando, por exemplo que a independência nacional não tem necessariamente que coincidir com a soberania estadual. Porque, como dizia Harold Laski, a soberania nacional, na sua acepção integral, implica a faculdade de arruinar uma civilização; esta implicação não pode ser considerada como necessária para a independência nacional.
Queremos, sobretudo, uma ordem internacional e grandes espaços onde se dê lugar aos pequenos Estados e por isso acreditamos, como Friedrich Hayek, que os pequenos Estados só podem preservar a sua independência, quer na esfera internacional quer na nacional, quando exista um sistema jurídico autêntico, um sistema jurídico que assegure a invariável vigência de certas leis e a impossibilidade de a autoridade que detém o poder de as impor, o utilizar para qualquer outro fim.
Os Estados não podem continuar a ser entidades que vivam em regime de out law só porque invocam a qualidade de soberanos. Para fazermos com que a paz vença a guerra, impõe-se que a paz não seja a continuação da guerra por outros meios, impõe-se que ela não seja uma paz dos cemitérios, mas antes uma paz pelo direito.
Para o conseguirmos, basta que apliquemos à ordem dita internacional aqueles princípios que já utilizamos para as ordens internas, os princípios do Estado de Direito e da democracia.
O que precisamos é de proceder à aplicação aos assuntos internacionais da democracia, o único intercâmbio pacífico que até hoje foi inventado. O que precisamos é de evitar que as pessoas se matem umas às outras, para o que não basta exprimir um piedoso desejo, fazer uma declaração dizendo que não se deve matar, mas antes atribuirmos a uma autoridade os poderes necessários para efectivamente o evitar. O que precisamos é de dar força ao direito, também no plano internacional.
Precisamos de uma autoridade supra-nacional... muito poderosa, mas é preciso que a sua constituição seja tal que em caso algum ela se não possa transformar numa tirania. É que se o direito, no plano interno, no plano da relação entre o Estado e os indivíduos, serve para a defesa contra a tirania, também deve servir, no plano das relações internacionais, para a defesa contra a tirania de um eventualmente novo super-Estado sobre as comunidades nacionais.
Em qualquer dos casos nunca chegarmos a impedir o abuso do poder se não estivermos preparados para limitar o poder. E não há situação que menos possa preservar a democracia ou contribuir para o seu crescimento do que a situação na qual a maior parte das decisões importantes esteja nas mãos de uma organização demasiado poderosa para que o homem vulgar a possa vigiar ou, sequer, abranger. Porque quando o âmbito das medidas políticas se torna tão vasto que quase só a burocracia possui delas o conhecimento necessário, o impulso necessário cada pessoa, retrai-se, dilui-se.
Só uma política que defenda o pluralismo a nível interno, que, começando por respeitar a autonomia da pessoa, respeite a autonomia dos grupos que esta constitui, pode criar, no plano internacional, criar uma ordem que respeite as autonomias de cada unidade política nacional ou estadual.