24.2.07

A biografia do Estado

A biografia do Estado
O Estado Moderno e Nacional, dito soberano e independente, constitui simples produto de uma determinada história, a história europeia e ocidental dos tempos modernos, situando-se assim numa certa encruzilhada com os seus antecedentes e os seus desenvolvimentos.
Se colocarmos como terminal do processo de construção do Estado a ideia weberiana de monopólio da força física legítima, não poderemos deixar de reconhecer que, mesmo nos estreitos limites da história europeia ocidental, tal poder de coacção nem sempre foi do centro político que nucleariza o Estado.
No próprio contexto dos oito séculos da nossa história também já o foi da vingança privada, do poder senhorial ( nobre ou eclesiástico) e do próprio poder municipal. Houve, com efeito, um longo processo de construção do Estado, através da centralização e concentração do poder, que culminou no chamado Estado Absoluto.
Isto é, o Estado é primacialmente o Estado como Justiça, ou o Estado Justiceiro, a justiça do rei, principalmente a justiça penal, a lutar contra a vingança privada e outras formas não públicas de reacção ao ilícito penal; o rei a nomear juizes para todo o reino, dos chamados juizes de fora aos corregedores; e a determinar que quando alguém se sentisse ofendido pedisse protecção ao centro, clamando aqui d'el rei.
Mas a construção de um centro político, através de um centripetação contra as periferias, passou também pelo lançamento dos impostos gerais e permanentes. E aqui, podemos dizer, como Maurice Duverger, que a história da democracia é a história do imposto.
Primeiro, porque a ideia de imposto geral determinou que se eliminassem as isenções e imunidades com que se privilegiavam determinados estamentos.
Segundo, porque o lançamento do imposto implicou a institucionalização de um mecanismo ou de um aparelho que propiciasse o consentimento do braço popular, dando origem aos parlamentos ou cortes.
Terceiro, porque os reis tiveram de estabelecer uma central recebedora de receitas públicas, circunstância que só foi possível quando se desenvolveu uma máquina exactora constituída por uma burocracia que deixou de ser paga por emolumentos, em espécie, e passou a receber vencimentos regulares, dentro de um direito à carreira.
Para rematar o centro, surge o Estado como Legislador, com a lei geral e abstracta a lutar contra a pluralidade dos costumes, a autonomia da doutrina e a resistência jurisprudencial.
É todo um processo de crescente predomínio da lei como fonte de direito, ao mesmo tempo que surgem os vários direitos estatais, distintos do direito romano e do direito canónico, que constituíam o direito comum europeu.
Um processo que se teve o seu momento alto com o absolutismo, não deixou de ser dinamizado pelo demoliberalismo quando a lei passou a ser uma manifestação da volonté générale
Depois das grandes Revoluções Atlânticas, da Revolução Inglesa à Revolução Americana, da Revolução Francesa ao movimento de independências da América Central e do Sul, passando pela primavera dos povos de 1848, eis que esse produto do racionalismo iluminista tentou também ganhar asas emotivas, com o romantismo, e conformar-se como Estado nação. Emerge então o chamado princípio das nacionalidades, segundo o qual, a entidade cultural, étnica, voluntarista ou histórica da nação deveria poder autodeterminar-se, constituindo-se em Estado.
Contudo, na esmagadora maioria dos casos, verificou-se que, em vez do movimento da nação para o Estado, se deu o preciso inverso da estatização, quando o Estado, decretando ser nação politicamente organizada, tratou de construir uma nação, instrumentalizando o nacionalismo, principalmente através dos subsistemas do serviço militar obrigatório e do ensino público.
Foi este modelo ocidental de organização do político que se mundializou unidimensionalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na sequência da chamada descolonização, posterior à Conferência de Bandung, gerando-se assim aquele Estado a que chegámos, com uma dimensão quase universal, dado que, hoje, existem cerca de duas centenas de unidades políticas que, como tal, se qualificam.
No campo europeu e ocidental, importa salientar também que, depois da questão social, da segunda metade do século XIX, o instinto de crescimento do poder da criatura estadual, aliada à circunstância da mesma se conceber como cérebro social ou como órgão do pensamento social, provocou a degenerescência das estatolatrias, com uma sucessão de autoritarismos, terrorismos e totalitarismos, expressas nas variadas formas do Estado ideológico, do Estado ético e do Estado de segurança nacional.
Mas, mesmo na forma moderada de Estado de Bem-Estar, ou de Estado-Providência, com intervencionismo nos domínios do económico e do social, a mesma entidade não deixou de se transformar num Estado de Mal Estar, quando se assumiu como Estado Empresário, Estado Planeador e Estado Gestor.
No contexto global da Europa, foi há pouco mais de um século, com a emergência da chamada questão social, que o débil aparelho de poder do Estado Liberalista foi obrigado a intervir numa área que até então era considerada como uma esfera não estadual, não pública ou não política, área que se decretava como reservada para a zona do social e do privado, onde apenas se desenrolariam os puros conflitos de interesses entre pessoas privadas.
Foi a partir de então que começou a emergir o chamado Estado Providência que levou o velho Estado Liberalista a deixar de ser um simples árbitro da chamada sociedade.
Foi então que se começou a passar do chamado Estado Abstencionista para o Estado Interventor
Até então ainda tínhamos o velho Estado Polícia apenas preocupado em garantir a segurança interna e externa de uma determinada comunidade política.
Era um Estado, acima de tudo, defensivo, que protegia e garantia a ordem pública, organizando a segurança interna pela polícia, pela administração judiciária e notarial e pelos impostos, e salvaguardando a segurança externa, pelas forças armadas.
Era este velho Estado Liberalista, uma espécie de cão de guarda da propriedade, alimentado a impostos, que vivia as delícias minimalistas do ne pas trop gouverner e que recolhia as vantagens de um certo free trade no plano da internacionalização económica.
Bastava-lhe, no plano da estruturação, estabelecer algumas regras do jogo político, económico e social e, quando muito, arbitrar a competição, a struggle for life entre as várias forças vivas.
Tal tipo de Estado, satisfeito em ter instaurado a igualdade da lei e em ter avançado com os Códigos Civis e com as Constituições, no domínio da igualdade de todos perante a lei, não se preocupava em estabelecer a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei.
Era, com efeito, um modelo de organização que não se preocupava com a Justiça e que apenas visionava a política como mera relação directa entre o indivíduo e o soberano, como dicotomia entre os governados e os governantes.
Nessa senda, os teóricos oficiais e oficiosos de tais regimes, marcados pelo utilitarismo e pelo positivismo, consideravam que não valia a pena a pesquisa sobre o fundamento racional da justiça, nem, muito menos, a respectiva teorização, considerando tal preocupação como mera questão metafísica e, consequentemente, metapolítica.
Acreditando na máxima de que as virtudes públicas seriam atingíveis pela via dos vícios privados, consideravam que o mero altruísmo intersubjectivo bastaria e que a chamada justiça não passaria de um simples instinto sem dignidade para se constituir em princípio social e, muito menos, no fundamento do Estado.
Um dos autores dessas correntes de pensamento chegou mesmo a proclamar que a justiça é uma noção mais ou menos vaga que os homens formam numa determinada época e num determinado grupo, uma noção que é infinitamente variável e está sempre a mudar, pelo que bastaria o mero sentimento do justo, esse sim um elemento permanente da natureza humana.
Não tarda até que um Nietzsche venha reduzir o altruísmo a uma simples virtude das chamadas raças inferiores, porque nas raças superiores, nos superhomens, o que dominaria era a Wille zur Macht de seres egotistas e amoralistas.
Bastaria pois que os homens procurassem os seus próprios bens individuais, dado que, por acréscimo, viria o bem geral, a utilitarista maior felicidade para o maior número (the greatest happiness to the greatest number), que seria a única medida do direito e do torto (is the mesure of wright and wrong).
Aliás, para estas correntes naturalistas, o homem não passaria de um mero animal razoável e calculista, sempre à procura do máximo de vantagens com um mínimo de esforços, onde a justiça não passaria da sofista conveniência dos mais fortes e o direito de um mínimo de moral, coactivamente estabelecido.
Eram estas as normas fundamentais do liberalismo utilitarista e do individualismo possessivo, marcados pelas heranças de Thomas Hobbes e de Jeremy Bentham, num misto de estadualismo e de individualismo, contente com a luta de todos contra todos do homem lobo do homem, que marcou o ritmo das concepções do homem de sucesso.
Um modelo que só aqui e além era temperado pelo liberalismo ético de um Adam Smith, que fazia apelo ao chamado princípio da simpatia, ao facto de qualquer homem ter necessidade de amar e ser amado e de, por isso mesmo, procurar ser amável.
Mas mesmo este liberalismo ético não deixava de adoptar uma visão restrita da justiça, reduzindo-a à paz e ao impostos leves, a fim de que o Estado pudesse proteger tanto quanto possível todos os membros da nação contra ataques, mesmo legais, de todos os outros, ou seja, manter uma legislação imparcial.
Todos sabemos como este equilíbrio teórico foi desfeito a partir de meados do século XIX, quando a ordem liberalista foi alvo de duas fortes contestações teóricas, provindas quer do socialismo quer da doutrina social da Igreja Católica.
Basta recordar que no ano de 1848 não só se edita o Manifesto Comunista, como também surge pela primeira vez a expressão democracia cristã, ao mesmo tempo que se começava a programar a necessidade de um Estado Social.
Mas é preciso esperar pela depressão da década e setenta do século passado para que os aparelhos de poder se transformem e que os mandamentos do free trade utilitarista entrem em decomposição.
E foi na França de Napoleão III e na Alemanha de Bismarck que começou a ganhar forma aquilo que os franceses vão qualificar como État Providence e que os alemães vão designar por Wohlfahrstaat.
Um tentando assumir-se como o superintendente da previdência social e tutor dos infelizes e dos que não têm quem os defenda, para utilizarmos as palavras de Jules Ferry. Outro, mais marcado pelo chamado socialismo catedrático, assumindo-se como um Sozial Staat que procurava executar uma sozial politik.
Deixa então de existir uma clara separação entre o chamado Estado e a chamada Sociedade, incluindo a economia, dado que a esfera social se vai repolitizar.
O velho dualismo entre a verticalidade de um Estado, entendido como a irresistível puissance dominatrice e a horizontalidade de uma Sociedade Civil, suposta como entidade desprovida de poder político, que havia sido instaurado pelo absolutismo, com a emergência de um soberano superior à sociedade, e que o demoliberalismo primitivo continuou, substituindo, embora o monarca absoluto pelo povo absoluto, entrou em regime de curto-circuito.
O novo modelo de Estado era assim obrigado a recuperar os clássicos fins o político e, para além da mera segurança, trata de procurar realizar a justiça e o bem -estar.
Se, numa primeira fase, apenas nos surge um Estado Coordenador, não tarda que este caia na tentação do Estado Gestor e nas intendências merceeiras do Estado Empresário, enquanto, paralelamente se desliza da mera planificação indicativa para o concentracionarismo da planificação imperativa.
Chega-se mesmo ao cúmulo de uma espécie de Estado Sábio, concebido como cérebro social, como órgão do pensamento social, ao mesmo tempo que se tem a ilusão de uma espécie de Estado Ético, que se pretendia definidor do bem e do mal, com uma estadual política do espírito, com novas inquisições e novas juntas censórias. Entra-se assim num crescendo de degenerescência estatolátrica, entre o autoritarismo e o totalitarismo, que vai fazer acrescer ao tradicional terrorismo de Estado um mais patológico terrorismo da razão.
Não se pense contudo que o modelo de intervencionismo moderado se propagou imediatamente a todas as comunidades políticas ocidentais. Nalguns casos, os modelos livre cambistas só entram em decomposição quando sofreram os efeitos da Grande Depressão de 1929, como aconteceu nos Estados Unidos da América, a partir do New Deal de Roosevelt.
Também entre nós, só com a emergência do salazarismo é que se vão conjugar algumas das reformas que, meio século antes, se haviam instaurado em França e na Alemanha.
Na verdade, o Estado Providência em português chamou-se sobretudo Estado Novo, dado que só com o salazarismo é que passou a praticar-se uma efectiva política social que superou a fase da casuística caridadezinha social.
Só a partir do salazarismo, quando se conciliou o catolicismo social da escola de Le Play, com o socialismo catedrático, é que se criou, pela primeira vez, um efectivo sistema de segurança social, bem como um modelo global de protecção laboral e de previdência social.
Aliás, só depois da Segunda Guerra Mundial, por influxo do keynesianismo e das novas práticas da social-democracia e da democracia-cristã, os dois principais contestadores da anterior ordem liberalista que, então, se assumiram como os principais gestores do novo sistema, só a partir de então é que, na Europa Ocidental, o Estado de Providência e o Welfare State se tornam dominantes, em torno do tópico da economia social de mercado.
A partir de então, as democracias ocidentais assistiram a um gigantesco crescimento do aparelho de poder estadual chamado a intervir na economia, na educação, na segurança social, no emprego e nos serviços de saúde e, durante algumas décadas, esse crescimento até se foi conjugando com a estabilidade e com o próprio desenvolvimento.
Contudo, nestas duas últimas décadas, aquilo que era um Estado de Bem Estar volveu-se por todo o lado num Estado de Mal Estar. É que, se as reivindicações pessoais e grupais foram, pouco a pouco, exigindo um maior intervencionismo do aparelho de poder estadual, eis que o aumento quantitativo da respectiva área de actividade alimentada pelo imposto, se tornou num instrumento pesado que passou a ser visto como o principal impecilho das citadas reivindicações.
E quanto mais o aparelho de poder foi crescendo, mais a inércia o foi cercando, pelo que começaram a surgir novas reivindicações como a do menos Estado, mais sociedade, falando-se na necessidade de crescentes privatizações e desregulamentações, no âmbito da proclamada libertação da sociedade civil.
Com efeito, passou a reconhecer-se que o novo modelo de Estado sofria de raquitismo. Que criou estruturas adiposas de gordura sem adequado músculo e calcificada ossatura, o que teria posto em causa as articulações e a própria estrutura óssea do corpo social.
Contudo, ao mesmo tempo que se falava em menos Estado relativamente aos intervencionismos anteriores, eis que logo se clamava por um melhor Estado, isto é, por uma nova intervenção da esfera pública em domínios como os da qualidade de vida, do ambiente, do regionalismo e da descentralização visando responder às novas questões sociais.
Mais uma vez, eis que, entre nós, a história continuava a ser marcada por outros ritmos. O velho Estado Novo salazarista, que aplicara ao Portugal dos anos trinta e quarenta, algumas das reformas bismarckianas, e que não conseguira adaptar-se às mudanças dos anos setenta com a tentativa de Estado Social de Marcello Caetano, que, no fundo, tentava instaurar entre nós, os modelos de economia social de mercado do imediato pós-guerra, vai ser abalado pelo processo revolucionário.
Assim, em 1974-1975, eis que, ao mesmo tempo que se levam ao clímax as sementes da sociedade de consumo, herdadas do marcelismo do tempo das vacas gordas, vai fazer acrescer-se ao estatismo salazarista o colectivismo gonçalvista.
O socialismo revolucionário teve aliás como aliciante uma espécie de socialismo de consumo, marcado pelo slogan dos ricos que paguem a crise, utilizando sobretudo as cenouras do salário mínimo e do emprego artificial que vão servir de alibi para o chicote das nacionalizações e das ocupações.
Depois, a social-democracia pós-revolucionária, democrática e pluralista, a dos governos PS e PSD, apenas pôde reformar no contexto das conquistas da revolução, consagradas pela Constituição e pela lei ordinária.
Surgiu assim um Welfare State à portuguesa, produto de um activismo, a Revolução, e de duas inércias, o que estava antes de 1974 e o oportunismo pós-revolucionário, que desencadeou o neocorporativismo dos gestores do sistema, sempre de acordo com os sucessivos situacionismos, os quais cederam a uma ideologia tecnocrática assente numa espécie de oportunismo prático, marcado pelos anacronismos utilitaristas do homem de sucesso e por uma sonora mas vaga invocação da modernização, esse travesti que, invocando algumas pistas da requentada tese do fim das ideologias, acabou por tentar fazer o impossível de tornar doméstico o que sempre foi público e de mercantilizar o que deve ser político.
No fundo, uma espécie de liberalismo a retalho que se guardou na pipa daqueles socialismos cesaristas que sempre agravaram o nosso ancestral capitalismo de Estado.
É que só pode haver melhor Estado e mais sociedade quando se abandonar o dualismo Estado-Sociedade, pelo regresso à política e o regresso à justiça.
O Estado a que chegámos produto destas contradições, não é apenas marcado pelo crescimento quantitativo do respectivo aparelho de poder, mas também por uma alteração qualitativa dos respectivos processos, provocada sobretudo pela repolitização da esfera social que, conforme salienta Jürgen Habermas, escapa à distinção entre 'público' e 'privado', ao mesmo tempo que o próprio sistema jurídico privado teve de receber um crescente número de contratos entre o poder público e pessoas privadas.
Há, portanto, que ultrapassar as classificações formais e que detectar tentações de estatolatria em todos os modelos organizacionais do poder político.
Para utilizarmos as palavras de Bertrand de Jouvenel, eis que o Estado e o Indivíduo não estão sozinhos na Sociedade, existindo outros poderes, poderes sociais relativamente aos quais o homem também é devedor de obediência e de serviços e como todo o poder na sociedade assenta nas obediências e nos tributos, exerce‑se naturalmente uma luta entre poderes para apropriação das obediências e dos tributos.
O Estado a que chegámos, com efeito, passou a ter uma actuação global face à sociedade, não se limitando a intervir em aspectos parcelares da mesma, dado que procurou garantir a integração existencial (Daseinsvorsorge), assegurando as condições vitais da existência de que o homem carece, para utilizarmos palavras de Ernst Forsthof.
Por outro lado, surgiu uma radical alteração das formas de representação política, com a emergência de novas formas de corporativismo, com esse sistema particular de representação dos interesses que se opõe ao pluralismo e ao sindicalismo, com esse sistema de representação dos interesses no quadro do qual os actores são organizados num número limitado de categorias funcionais, obrigatórias, disciplinadas, hierarquizadas e ao abrigo de qualquer concorrência; elas são reconhecidas e admitidas (senão criadas) pelo Estado e beneficiam dum monopólio de representação na medida em que eles conseguem como contrapartida em controlar a selecção dos seus dirigentes o tipo de procuras que se exprimem e o apoio que recebem.
O Estado Moderno, quando abandonou o jacobinismo individualista, viu‑se privado de algumas tradicionais atribuições, tanto em proveito dos trusts e cartéis dos patrões capitalistas, como dos sindicatos dos operários e restantes trabalhadores por conta de outrem, para além das ordens profissionais das chamadas profissões liberais.
Acontece, inclusive, que algumas formas de poder local, desde as regiões aos municípios, que, teoricamente, são uma forma de manifestação do Estado, passaram a considerar‑se como poderes autónomos que apenas gravitam em torno de um poder central, assumindo‑se de forma sindicalista como uma espécie de contrapoder.
O Estado a que chegámos gerou o crescimento de uma burocracia, por vezes já não burocrática, que levou ao aparecimento de uma espécie de Estado dentro do Estado, dado que se a sociedade já não é autónoma, se já não se mantém auto‑regulando‑se como uma esfera que precede e subjaz o Estado, então, o Estado e a sociedade já não conseguem manter a anterior relação fixada segundo o modelo da base e da super‑estrutura.
Surgiu assim um Estado que é neocorporativo a nível da sociedade e que é um Estado de partidos a nível da participação no poder político, um Estado em tempo de poliarquia.
A questão fundamental do Estado a que chegámos, deste Estado que pretendendo ser de Bem-Estar acabou por se tornar de Mal Estar, está no facto de apenas continuar a ginasticar o respectivo corpo sem se preocupar com a procura de um espírito são.
Julgo que a respectiva reforma só pode ser levada a cabo quando se retomarem as teorias fundamentais da polis como entidade que tem a justiça como estrela polar.
Como já salientava Aristóteles, só pode haver política quando os homens compartilharem em comum o sentido da justiça, porque a justiça é coisa da polis, é o princípio de ordem de uma comunidade política.
Só quando retomarmos a justiça como o fim da política, como o bem político por excelência, só quando a voltarmos a considerar como a primeira virtude das instituições sociais é que podemos vencer este mal-estar prático e teórico, em cuja encruzilhada nos encontramos.
Porque, como proclama John Rawls, a Justiça está para a política, assim como a verdade está para o pensamento.