24.2.07

O Estado-razão II

No seguimento desta perspectiva weberiana, também Reinhard Bendix assinala o facto da construção do Estado ser inseparável do processo de burocratização, pela qual passou a existir uma Administração Pública com controlo sobre o recrutamento do respectivo pessoal e, portanto, tendencialmente independente tanto da competição política como dos próprios interesses privados.
Esta nova burocracia dos funcionários do Estado vai, aliás, servir como ponta de lança do poder central dos reis contra a aristocracia, situação paralela à própria utilização de tropas mercenárias pelos reis, para ultrapassarem a necessidade de recurso aos exércitos quase privados das aristocracias.
É que toda a burocracia tende sempre a desenvolver a ideia do Estado como algo de mais duradouro que os governos ou as pessoas dos soberanos.
Trata-se, com efeito, de uma burocracia que concebe os ofícios como uma função pública, um officium ou um ministerium, de servus ministerialis, onde, contra a anterior concepção se considera que o cargo público existe para a realização de um determinado fim e com poderes vinculados à respectiva concretização, contrariamente à ideia de honra.
Considera-se também que a competência, porque existe uma missão a cumprir, é mais importante que a fidelidade. Finalmente, salienta-se que a função está marcada pelo princípio da responsabilidade, isto é, que aqueles para os quais existe podem afastar o funcionário do cargo, revogando‑lhe a missão em caso de prevaricação (revocabilidade em lugar de patrimonialidade).
Dentro desta perspectiva, Samuel Finer considera que o Estado surgiu quando se deu uma modificação da estratégia das elites periféricas que abandonaram a sua tradicional resistência perante o centro do sistema político, optando pela tentativa de procurar o respectivo controlo.
Tal momento aconteceu com o fim da sociedade feudal e o aparecimento do Estado Territorial, dado que, a partir desse momento, a relação centro-periferia passou a fazer-se em termos de dominação.
Compreende-se assim que Charles Tily defina o Estado como organização que controla a população ocupando um território definido na medida em que é diferenciada das outras organizações que operam sobre o mesmo território; é autónoma; é centralizada; e as respectivas subdivisões são coordenadas umas com as outras.
O Estado terá nascido contra uma sociedade tradicional que era marcada pela resistência das estruturas comunitárias, pela ossificação da periferia e pela recusa de integração em novas redes de troca. E também não seriam despiciendos alguns factores económicos, dado que o Estado vai proteger novas actividades económicas, desencadear a conversão da agricultura, favorecer a procura de mercados e assegurar o controlo dos mares.
Aliás, outro dos sinais de superação da sociedade feudal está na existência de representações diplomáticas permanentes desde o século XV, elemento revelador do facto do Estado começar a ser pensado como unidade permanente.
Temos, assim, que o Estado é o produto de uma história (a da Europa) e de uma época (a Renascença), constituindo um especial modo de centralização e uma especial estrutura política de coordenação.
Porque a Europa dos séculos XVI e XVII queria o desenvolvimento do comércio, a uniformidade legal, o desaparecimento das barreiras legais.
Assim, o nascimento do Estado corresponde a uma criação do poder e não à simples transmissão do poder, dado que o Estado é fonte autónoma de poder ao mesmo tempo que é desafio para a luta política e não um lugar de reconciliação de interesses opostos.
Além disso, na mesma época, exigia-se um Estado interventor no domínio religioso, para assegurar a unidade e dar protecção às minorias. Não é por acaso que se inventou a soberania para se pôr fim às guerras religiosas em França
Na mesma linha das teses de Weber, eis que o sociólogo francês Émile Durkheim, numa amálgama de hegelianismo e organicismo, conforme a expressão de Bertrand de Jouvenel, e visando procurar superar a incapacidade demonstrada pelo demoliberalismo da época em que viveu face à pressão dos grupos intermediários, veio considerar o Estado como o cérebro social, como o órgão que está encarregado de representar o corpo social no seu conjunto e de o dirigir. É que toda a vida do Estado propriamente dito passa-se não em acções exteriores, em movimentos, mas em deliberações, isto é, em representações. Assim, a sua função essencial é a de pensar dado que não executa nada.
O Estado é entendido como a sede de uma consciência especial, restrita, mas mais alta, mais clara, tendo dele mesmo um mais vivo sentimento, situando-se de tal modo longe os interesses particulares que não pode ter em conta condições especiais, locais, etc., nas quais se encontram.
Considera também que o Estado é o órgão do pensamento social. Não que todo o pensamento social emane do Estado. Mas está lá de duas formas. Uma vem da massa colectiva e é difusa: é feita destes sentimentos, destas aspirações, destas crenças que a sociedade elaborou colectivamente e que estão dispersas em todas as consciências. A outra é elaborada neste órgão especial que se chama Estado ou governo... Uma... permanece na penumbra do subconsciente. Mal nos damos conta de todos estes preconceitos colectivos ... Toda esta vida tem qualquer coisa de espontâneo e de automático, de irreflectido. Pelo contrário, a deliberação, a reflexão é a característica de tudo o que se passa no órgão governamental. É verdadeiramente um órgão de reflexão.
Neste sentido, o papel do Estado, com efeito, não é de exprimir o pensamento irreflectido da multidão, mas de acrescentar a este pensamento irreflectido um pensamento mais meditado e que, por consequência, tem de ser diferente.
O Estado surge, pois, como um mecanismo de comunicação e de transmissão de informações, bem como um instrumento neutro e funcional, claramente separado da sociedade.