24.2.07

Estado de Direito

Estado de Direito
O nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições , passou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, que democratizou a expressão Rechtsstaat da teoria germânica de então, considerando-o como marcado pela absence of arbitrary power on the part of government.
Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.
É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual, implicando, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).
Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Como refere Jacques Chevalier, o Estado de Direito, com efeito, até agora, era apanágio dos juristas, sendo objecto de um discurso de saberes apenas acessível aos iniciados... acontece que o Estado de Direito saiu desta penumbra protectora do campo jurídico ... Bruscamente lançado na praça pública, tornou-se num valor em si, transformando-se numa imposição axiológica, conhecendo uma sobrecarga de significação que lhe dá uma totalmente nova significação.
Na verdade, o conceito de Estado de Direito tem um carácter fecundante, só podendo ser entendido em termos de polaridade face a um Estado de Não Direito, desde os Estados absolutistas que precederam as Revoluções Atlânticas, às experiências autoritárias e totalitárias dos nossos tempos.
E aqui, importa recordar que o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote; segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito, uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano tem poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que pode, quando assim o desejar, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis dado que ele já estava livre antes, porque é livre aquele que pode sê-lo quando desejar; terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.
Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.
O Estado de Direito, portanto, não é um c'est lui, um soberano, situado acima ou fora da sociedade ou comunidade, a que temos de submeter-nos como súbditos, unidimensionalmente perspectivados, mas antes um c'est tout le monde, onde o Estado somos nós, todos e cada um de nós, enquanto cidadãos, enquanto aqueles que participam nas decisões, aqueles são governados porque podem governar.
Isto é, o Estado-aparelho de poder passou a ser visto como simples manifestação do Estado-comunidade. O Estado passou a ser entendido como a concórdia do princeps e da res publica, como a harmonização do Estado-governo e do Estado-comunidade, onde o próprio princeps se perspectiva como uma emanação da res publica.
O Estado é assim a mistura da cidade do comando e da cidade da obediência. Porque, conforme os medievais restauradores da polis, eis que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino, donde deriva o moralizante brocardo do rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É que, conforme refere Blandine Barret-Kriegel, o Estado de Direito resultou de uma dupla operação: primeiro, uma juridificação da política; segundo, uma constitucionalização do poder. Uma operação que deu direito a uma sociedade senhorial e civilizou uma comunidade guerreira. Foi o direito contra o poder, a paz contra a guerra.
No fundo, equivale à velha expressão de Plínio, dirigindo-se a Trajano, quando aquele proclamava que inventámos um Príncipe para deixarmos de ter um dono. Para, em vez de continuarmos a obedecer a outro homem, podermos passar a obedecer a uma abstracção.
Em síntese: a tentativa de passagem de uma razão de Estado a um Estado Razão, a tentativa de transformação da política numa espécie de realização da filosofia entre os homens.
Porque, o que estava antes, e o que está sempre a ameaçar-nos, é o despotismo, conforme a clássica definição de Montesquieu, essa relação de senhor/escravo, onde tudo se reduz a conciliar o governo político e civil com o governo doméstico, os oficiais do Estado com os do serralho, onde o vizir é o déspota dele próprio e cada oficial particular, o vizir.
Voltando a Blandine Barret-Kriegel, sempre poderemos dizer que o Estado de Direito foi marcado pela ideia de um poder que foi capaz de construir uma civilidade política, instituída, não sobre a guerra e o direito à conquista, mas sobre a justiça e a negociação jurídica. Um modelo fundado no direito natural e nas referências bíblicas ao Estado dos Hebreus, a uma sociedade de paz estabelecida por um contrato ‑ em vez de uma sociedade constituída pela guerra ‑ segundo o modelo do pacto bíblico estabelecido entre Deus e Abraão e, depois, entre Deus e Moisés
Porque, como disse Fernando Pessoa, o Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado. Porque, como escreveu o nosso Manuel Rodrigues Leitão, nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode , está muito perto de fazer o que não pode. Porque todo o poder num Estado de Direito é um poder-dever, um encargo, um ofício (o officium de São Tomás ou o trust de John Locke), onde o poder é potestas com auctoritas e onde o detentor do poder é servidor, servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder; pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder.
O que caracteriza o Estado de Direito, pois, não é apenas o facto de existirem leis dotadas de universalidade (tal qualidade também pode existir num Estado Autocrático), mas o facto das leis existentes não poderem ser modificadas sem o consentimento dos cidadãos dado pelas formas prescritas na lei constitucional ... aquela lei fundamental que regula a modificação de qualquer outra lei incluindo ela mesma, como refere Eric Weil.
Já o nosso António Ribeiro dos Santos, defendia que em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo.
No fundo, o Estado de Direito é aquele que tem menos a ver com a vontade de todos, aquela vontade que atende ao interesse privado e não é senão a soma de vontades particulares, e mais a ver com a vontade geral, com aquela que não atende senão ao interesse comum, conforme profetizava Rousseau. Isto é, eu só posso exigir ao Estado-Aparelho que exerça um poder dever, se, enquanto membro do Estado-Comunidade, eu assumir a exigência ética e cívica de me comportar de tal maneira que a máxima da minha conduta possa transformar-se em lei universal.
Neste sentido, o Estado de Direito assume-se como um processo de moralização da política, onde a moral é um limite da soberania, muito especialmente quando tem de decidir-se em estado de excepção, e onde o direito é um limite do poder
Com o Estado de Direito, parafraseando Luís Cabral de Moncada, visa-se, por um lado, que o direito passe a servir uma política e, por outro, que a política seja limitada por um direito. Como o Estado de Direito, seguindo agora uma imagem de Alceu Amoroso Lima, visa-se, por um lado, que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública