24.2.07

O paradigma do Estado Moderno

O Estado Moderno
A organização do político no nosso espaço e do nosso tempo é marcada pela existência de uma entidade que, segundo a definição escolarmente modernista de Marcello Caetano, é constituída por um povo fixado num território, de que é senhor, e que, dentro das fronteiras desse território, institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à vida colectiva e imponham a respectiva execução.
Tal unidade a que se dá o nome de Estado e que, em português, tem direito a maiúscula , segundo aquelas escolas de direito público dominantes que marcaram o subsolo filosófico da nossa Constituição, é susceptível de ser decomposta, quase mecanicamente, em três elementos o povo, o território e o poder político sendo-lhe atribuídos outros tantos fins a segurança, a justiça e o bem-estar social.
Na senda da definição de Marcello Caetano, Diogo Freitas do Amaral entende o Estado como a comunidade constituída por um povo que, a fim de realizar os seus ideais de segurança, justiça e bem‑estar, se assenhoreia de um território e nele institui por autoridade própria, o poder de dirigir os destinos nacionais e impor as normas necessárias à vida colectiva.
Em qualquer dos casos, o Estado constitui mera espécie de um sistema conceitual. Ele não passa de um conjunto de certos elementos que visa outros tantos fins. Contudo, cada um desses elementos e cada um desses fins é também juridicamente disciplinável e, como tal, enquadrável no círculo concêntrico dos conceitos.
Na verdade, para este universo toda a realidade sofre uma transfiguração conceitual, passando a constituir um simples substracto fecundante do processo mental do jurídico, que actua sempre de forma mediata. Mas porque esse círculo não consegue ser intrinsecamente puro, há sempre um momento em que se abrem as portas a outros elementos rebeldes à juridicidade e apenas susceptíveis de entendimento filosófico, sociológico ou poético, como é o caso de nação ou de país, quando não à própria teologia, como é o caso de modelos como os de unidade ou representação.
Perante isto é natural que muitos autores tenham que refugiar‑se, a partir de certa altura, numa barricada conceitual, que corre sempre o risco de transformar‑se numa espécie de círculo vicioso.
Jorge Miranda, por exemplo, considera o Estado como comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o direito permite passar, na comunidade, da simples coexistência à coesão universal e, no poder, do facto à instituição
O mesmo autor, noutro lugar, considera expressivamente que Estado, povo e poder são noções que reciprocamente se implicam, todas três realidades formadas no mesmo instante por virtude do facto constitutivo do Estado.
No mesmo sentido, Diogo Freitas do Amaral, para quem o Estado vai buscar ao direito a fonte da sua legitimidade ‑ a ideia de legitimidade pressupõe a conformidade com uma ou mais normas; por outro lado, o Estado organiza‑se através do Direito ‑ e a ideia de organização pressupõe a elaboração de normas genéricas de execução permanente; enfim, o Estado encontra‑se subordinado ao Direito ‑ e a ideia de subordinação pressupõe o dever de obediência às normas em vigor, ainda que tenham sido elaboradas pelo próprio Estado.
Contudo, foi com a teoria pura do Estado (reine staatslehre) de Hans Kelsen (1881‑1973) que se atingiu o auge de uma concepção normativista de Estado, considerando-se que o Estado é o Direito e que o Direito é o Estado, onde o poder não passaria da eficácia da ordem jurídica estadual, o território do âmbito espacial de aplicação da ordem jurídica a população, da esfera de aplicação pessoal da mesma.
Kelsen, com efeito, pretendia abordar o Estado de forma radicalmente realista, libertando‑o tanto dos factos da realidade social, como das valorações éticas que, com ele, andam normalmente associadas.
No primeiro caso, pretende opor o normativismo ao sociologismo; no segundo caso, fazer um corte com o jusnaturalismo.
Quer libertar o Estado e o Direito daquilo que designa pela névoa metafísica, que os considera como algo de sagrado na sua origem ou na sua ideia.
Pretende um conhecimento do Estado isento de elementos ideológicos e, portanto, liberto de toda a metafísica e de toda a mística. Para ele, ao separar‑se com toda a clareza a teoria do Estado da política ‑ como Ética e Técnica social ‑ de um lado, e a ciência natural e a sociologia naturalista, por outro lado, realiza‑se o postulado da pureza do método.
Neste sentido, considera que, Estado e ordem jurídica são uma e a mesma coisa. O Estado é o direito e o direito é o Estado. Mais: todo o Direito é um Staatsrecht e todo o Estado um Rechtsstaat. E isto porque todo o Estado é um Estado de Direito no sentido de que todos os actos estaduais são actos jurídicos porque e na medida em que realizam uma ordem que há‑de ser qualificada de jurídica.
Como sugestivamente afirma, o Estado é uma espécie de rei Midas que converte em Direito tudo quanto toca e que não há fim algum que o Estado possa prosseguir a não ser na forma do Direito.
A validade e a vigência tomam o nome de poder: o poder do Estado não é uma força ou uma instância mística, que seria dissimulada por trás do Estado ou por trás do seu direito; não é senão a eficácia da ordem jurídica estadual.
E isto porque toda a ordem jurídica é um constrangimento organizado. Com efeito, para ser Estado, a ordem jurídica tem que ter o carácter de uma organização em sentido estrito.
Do mesmo modo, o território é juridicamente conceitualizável: não passa do âmbito espacial de aplicação da ordem jurídica.
Também a população constitui uma simples esfera de aplicação pessoal da ordem jurídica estadual. Como ele diz, logo que se reconheça ‑ como faz a teoria jurídica pura ‑ que o Estado é uma ordem de coacção da conduta humana; e logo que se demonstre ‑ como faz também a mesma teoria ‑ que esta ordem de coacção não pode ser uma ordem diferente da jurídica, porque numa comunidade não há nem pode haver mais do que uma só ordem de coacção que a constitua, também, que qualquer manifestação vital do Estado, qualquer 'acto estadual', tem que ser um acto jurídico, pois nenhuma acção humana pode ser qualificada de acto estadual senão tendo por base uma norma jurídica, em virtude da qual, por outro lado, se imputa essa acção ao estado, quer dizer, à unidade da ordem jurídica.
Kelsen salienta mesmo que o dualismo do Estado e do Direito provem de hipostasiar‑se a personificação, afirmando que esta expressão figurada é um ser real, e opondo‑a, assim ao Direito. E isto porque o elemento constituinte da comunidade política é uma ordem. O Estado não são os seus indivíduos; e a específica união dos indivíduos, e esta união é a função da ordem que regula o seu comportamento mútuo.
O Estado é uma comunidade política porque e na medida em que o meio específico com que esta ordem reguladora trata de alcançar o seu fim e a instituição de medidas coercitivas e é a ordem coercitiva que constitui a comunidade política a que chamamos Estado, é uma ordem jurídica. O que geralmente se chama ordem jurídica do Estado, a ordem jurídica imposta pelo Estado, é o próprio Estado.
Veja‑se, por exemplo, o que o próprio Kelsen considera como uma comunidade de indivíduos [...] aquilo que é comum a esses indivíduos; consiste unicamente na ordem que regula o seu comportamento.
Trata‑se de um sistema que o mesmo Kelsen, aliás, reconhecia como panteísta. O Estado, como criador, é equiparado a Deus; o Direito, como criatura, faz as vezes do Mundo: assim como o caminho para uma autêntica ciência da natureza somente foi desimpedido através do panteísmo, que identifica Deus com o Mundo, quer dizer com a ordem da natureza, também a identificação do Estado com o Direito, o conhecimento de que o Estado é uma ordem jurídica, é o pressuposto de uma genuína ciência jurídica.