24.2.07

Os elementos do Estado

Os elementos do Estado
De acordo com o paradigma das escolas de direito público dominantes em Portugal é tradicional, no âmbito da ciência do direito constitucional, a referência aos elementos e aos fins do Estado, no âmbito do prévio estabelecimento do conceito de Estado.
O Estado não passaria assim de um conjunto de certos elementos, como o povo, o território e o poder político, visando outros tantos fins, como a segurança, a justiça e o bem‑estar, onde cada um desses elementos e cada um desses fins são entendidos como simples produtos do pensamento, como meras abstracções, juridicamente disciplináveis e, como tal, enquadráveis no círculo concêntrico dos conceitos.
Acontece apenas que o Estado não cabe todo no laboratório jusconceitualista, dado se assumir como um ser complexo e estratiforme que, pela população e pelo território, tem os pés no mundo sensível, o tronco no mundo não sensível da cultura e a cabeça no mundo ideal dos fins e valores do espírito humano .
Segundo o paradigma dominante, o Estado tem, por um lado, um conjunto de elementos sensíveis, uma base material, dotada de uma certa organização o chamado corpo político e, por outro, um enquadramento supra-sensível, uma certa ideia de obra, um conjunto de fins.
A base material, o suporte da entidade estadual, é sempre um conjunto geo-humano, uma associação de pessoas assente num determinado espaço, isto é, a conjugação de um elemento societário, marcado por hábitos complementares de comunicação chame-se povo, comunidade ou nação , e de um elemento territorial chame-se terra, chão ou país.
A organização dada a essa base material corresponde ao chamado poder político, que se desdobra tanto no princípio do governo a existência de uns a mandar e outros a obedecer como no princípio da exclusividade o aparelho de poder tende sempre a evitar a existência de outros concorrentes dentro do mesmo conjunto geo-humano.
Só assim emerge um organismo político, levando a que um conjunto de pessoas adquiram comportamentos políticos e lealdades comuns, atingindo-se a possibilidade sistémica de fazer com que as várias subunidades cumpram as respectivas obrigações, integrando-se os vários subsistemas e permitindo-se o estabelecimento de processos de decisão, propiciadores de uma distribuição de valores.
Mas não basta a organização para que o conjunto se transforme num todo, exigindo-se uma ideia, capaz de lhe dar um fim, capaz de unir um povo, de espiritualizar uma determinada terra, de dar legitimidade ao poder e de constituir uma comunidade, marcada pela comunhão em torno de coisas que se amem.
Só assim é que o corpo político, depois de organizado, se transforma numa realidade abstracta, capaz de racionalizar o conjunto da vida social, incorporando a força numa instituição, conciliando a liberdade e poder e transformando a razão de Estado num Estado-Razão.
A esse fim supremo pode dar-se o nome de racionalidade, que, no entanto, se não reduz à racionalidade técnica do útil, dado impor uma racionalidade ética, a do viver honestamente, que exige a justiça, e a procura da boa sociedade.
Nestes termos, o Estado, como sublinha Cabral Moncada, surge-nos como um ser complexo e estratiforme com os pés no mundo sensível, na população e no território, o tronco no mundo não sensível da cultura e a cabeça no mundo ideal dos fins e valores do espírito humano.
De qualquer maneira, mesmo dentro do paradigma dominante, o Estado é sempre um conjunto do Estado-comunidade, ou república, e do Estado-aparelho de poder, ou principado e, mesmo no tocante ao aparelho de poder, não se reduz ao governo e à administração pública, directa ou indirecta, abrangendo todos os chamados órgãos de soberania, os restantes serviços públicos, centrais, regionais, locais, bem como as próprias pessoas colectivas por ele conformadas.
A este respeito, importa salientar que Jean Bodin apelava para a distinção entre aquilo que ele considerava como a république de outra coisa a que dava o nome de l'estat. Com efeito, há uma distinção a fazer entre a comunidade política, o Estado em sentido amplo, a chamada sede da soberania e a forma de governo, a maneira de se exercer o poder, para aquilo que Adriano Moreira refere como a estrutura que monopoliza a força suprema dentro da comunidade e que pode não coincidir com aquilo que legalmente recebe esse nome.
Outras teses, menos presas ao soberanismo, salientam que qualquer sociedade política é sempre um conjunto de sociedades, um mosaico ou um complexo de grupos, cuja dinâmica, através de uma série de constelações que se fazem e desfazem, gera uma pluralidade de centros de decisão, apenas unificados por uma estrutura de rede (network structure). Assim, de acordo com estas teses pluralistas, o Estado é perspectivado, não como uma coisa, mas como um processo relacional, entre a sociedade civil, ou comunidade, e o aparelho de poder, como o mero quadro estrutural de um jogo entre forças centrífugas e centrípetas, que constituiriam uma rede de micropoderes, locais, regionais, familiares, económicos e culturais, toda uma miríade de poderes periféricos, não necessariamente hierarquizáveis como corpos intermediários, que se justaporiam, de forma complexa, pelo que a soberania, na prática, seria divisível e, sobre o mesmo espaço e as mesmas pessoas, não teria que haver o centralismo e o concentracionarismo de uma única governação.
O Estado é, deste modo, perspectivado como um sistema aberto, como um macrocosmos de macrocosmos sociais, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e com os vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas (input) e saídas prestativas (output), e onde a política seria uma actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão. Governar tornar-se-ia assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses. Porque o Estado é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensõe da sociedade.
Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e ao lado do Estado, pelo que seria possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano.
Por outras palavras, o Estado não seria o fim da história do político nem o hegeliano advento de Deus à terra, mas uma simples contingência histórica. Porque teria havido unidades políticas maiores e porque deveriam conceber-se comunidades políticas supra-estaduais, incluindo essa sociedade das nações, em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, possa esperar a sua segurança e os seus direitos, não do seu próprio poder ou do seu próprios juízo jurídico, mas dessa grande sociedade das nações, duma força unidade e da decisão da vontade comum, fundamentada em leis, como diria Kant.
Neste sentido, podemos dizer, na senda de de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização.
De qualquer maneira, eis que Estado é sempre produto da natureza racional e da vontade do homem. O poder supremo, necessário para que o Estado seja uma comunidade perfeita, se é um poder que, na sua ordem, não reconhece nenhum poder superior, eis que tem de adequar-se a outros poderes qualitativamente superiores, prosseguindo outros fins, de acordo com a lógica daquele princípio da subsidiariedade que, reconhecendo o Estado como sujeito autónomo de decisão moral, em nome da autonomia e da subjectividade da sociedade, para utilizarmos palavras de João Paulo II, não deixa de salientar que uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.