24.2.07

No princípio era a "polis"

No princípio era a polis
A polis, na Grécia antiga, é o ponto de partida para uma forma que, grosso modo, corresponde hoje àquilo a que damos o nome de Estado.
Uma entidade que, em Roma, vai ter como sucessora a civitas, donde emerge a res publica, e que, na Europa dos séculos XII e XIII, se transforma em regnum, para, a partir da Renascença, se ir progressivamente transformando em Estado, essa palavra nova, inventada por , reflectindo, como salienta Hermann Heller, unidades de poder contínuas, com um exército, uma hierarquia de funcionários e uma ordem jurídica unitária, com a concentração num centro político dos instrumentos militares, burocráticos e económicos, em contraste com a anterior poliarquia com um caracter territorial impreciso.
Trata-se de uma linha evolutiva que, desde sempre, teve algumas formas paralelas, derivadas e até degeneradas.
Na Grécia antiga, as várias cidades que invocavam uma origem comum, assumiam-se como genos, como uma entidade marcada por uma certa comunidade étnica, origem remota daquilo que hoje qualificamos como nação.
Em Roma, a partir do principado, a res publica começa a ser usurpada pelo Imperium, ponto de partida para aquela categoria que, na Idade Média, será qualificada como a monarquia universal, sobre a qual se vai conformar o modelo soberanista e territorialista do absolutismo, esse que vai levar a que se hipostasie o centro político. Como vai observar : autrefois, chaque village en France était une capitale; il n'y en a aujourd-hui qu'une grande: chaque partie de l'État était un centre de puissances; aujourd-hui tout se rapporte à un centre; et ce centre est, pour ainsi dire, l'État même.
Na Idade Média, contudo, emergem também as cidades, comunas ou burgos que, em português, tiveram o nome de concelhos, desde os rurais aos urbano-mercantis, entidades que ora se assumem como entidades livres, carregadas de politicidade, ora se tornam elementos do reino, como repúblicas menores a caminho de uma república maior, mas demonstrando a hipótese de um corpo político infra-estatal.
E no nosso tempo, eis que se volta à procura de um político supra-estatal, pela construção dos grandes espaços, uma espécie de patamar intermédio, visando a clássica ideia de república universal.
No tocante às origens da polis, deixemo-nos guiar pelas metáforas de , quando este falava na polis como uma agregação de aldeias, onde a aldeia era um conjunto de casas e a casa, uma família extensa, assente no gregário animal das relações homem-mulher e homem-mulher-filhos.
A primeira das comunidades que Aristóteles inventaria é a casa (oikos). Uma comunidade complexa, abarcando três tipos de relações: primeiro, a relação do homem e da mulher, para a conservação da espécie; segundo, a relação dos pais com os filhos, tendo em vista a sobrevivência e a educação destes; terceiro, a relação do chefe da casa, enquanto unidade económica, com os respectivos dependentes.
O conceito de casa engloba, portanto, tanto o de comunidade familiar propriamente dita, a associação entre marido e mulher e entre o pai e os filhos, como o de comunidade económica, onde Aristóteles incluía a relação entre o senhor, ou o dono, e o escravo.
Segundo as suas próprias palavras, a primeira união necessária é a de dois seres que são incapazes de existir um sem o outro: é o caso daquela que se estabelece entre o macho e a fêmea tendo em vista a procriação ... uma tendência natural para se deixar, depois de si, um ser semelhante a si. A segunda é a união daquela cuja natureza é a de mandar com aquele cuja natureza é a de ser mandado, tendo em vista a conservação em comum.
A casa, ou família em sentido amplo, formou-se pois destas duas comunidades: do homem e da mulher, do senhor e do escravo. É uma comunidade constituída pela natureza para a satisfação das necessidades quotidianas, aqueles que comem o mesmo pão ou que se aquecem com o mesmo fogo, como o próprio Aristóteles evoca, citando autores anteriores.
A casa é assim entendida por Aristóteles como uma sociedade mais ampla que a dos parentes biológicos, dado que nela também se incluem os escravos. E o mesmo Aristóteles, acentuando o carácter económico desta comunidade, não deixa de assinalar que, nas famílias pobres, em vez dos escravos, estão os bois.
Depois, vem a aldeia (kome), a união de várias casas, de várias famílias, que continuando a ter em vista a satisfação de necessidades vitais, já não se reduz apenas à satisfação das necessidades quotidianas. Segundo as próprias palavras de Aristóteles, a primeira comunidade formada por várias famílias tendo em vista a satisfação de necessidades que já não são puramente quotidianas. E que parece ser uma extensão da família.
Só depois, da associação de várias aldeias é que pode surgir a polis.
Contudo, Aristóteles não diz que todas as formas de associação de aldeias geraram uma polis, introduzindo, na sequência da exposição, a referência a uma entidade composta de aldeias, mas qualitativamente diferente: a genos, a mera associação de famílias, que uns traduzem por estirpe, outros por nação, não faltando sequer quem a refira como pátria.
Aristóteles refere que a genos subsiste ao lado das poleis, definindo aquela como a reunião de elementos submetidos ao regime monárquico. Porque o rei está para a família extensa como o pai para a família, dado que, em ambos os casos, o elemento de ligação é o parentesco entre os seus membros.
Acrescenta no entanto que na origem, as poleis eram governadas por reis.
De facto, a polis teve remotas origens na genos, onde todos os membros descendiam de um antepassado comum ou tratavam de adorar a mesma divindade. Uma genos dirigida por um chefe, detentor da palavra divina, dona de um código de justiça familiar, a themis.
Uma genos que, entretanto, se sedentarizou, instalando o palácio do chefe e os santuários na parte alta (a acropolis), enquanto na parte baixa (asty) existiam as aldeias.
Com efeito, só quando se deu o desenvolvimento da agricultura e do comércio é que a parte baixa começou a ganhar relevo, surgindo então o fluído nome de polis para qualificar o conjunto.
Isto é, a polis, mistura da acrópole com a campina, é originária de uma inicial pátria militar instalada numa cidadela, com preponderância da nobreza militar e do sacerdócio, uma entidade que só atingiu a dimensão de autarcia quando se aliou com a campina agrícola das redondezas, quando a paz permitiu segurança no cultivo dos campos e no doce comércio.
Se a existência da família em sentido estrito – a relação masculino/ feminino e relação progenitores/ filhos – reflecte uma etapa primária de agregação, marcada pela sensação de prazer e de dor, idêntica àquele instinto de conservação da espécie que também possibilita aos animais viverem em rebanho, eis que a emergência da família extensa, no sentido clássico de casa, com um chefe da casa, parentes e escravos, já tem uma raiz económica, no sentido de oikos-nomos, de administração da casa.
Aqui, o homem, ultrapassando o animalesco, já é marcado por uma racionalidade técnica, já é um sócio que se agrega em nome de considerações técnicas e práticas sobre o útil e o prejudicial, já desenvolve um pensamento retrospectivo e prospectivo ao serviço de interesses individuais e de carácter grupal, já tem em vista a constituição de uma associação pragmática de fins, de uma comunidade económica, de uma aliança de guerra e comércio, já procura uma vida mais agradável e segura.
Só que se impõe algo mais do que a mera racionalidade técnica. A polis exige também uma racionalidade ética, exige a representação comum do bom e do justo, exige a consideração de um interesse comum no bem e no mal, no direito e no não direito.
A polis não é apenas junção societária, não é apenas proximidade, contiguidade e forma de vida conjunta. A polis é sobretudo koinonia, comunhão, comunidade, é consciência de um destino comum, fé comum, comunhão em torno de coisas que se amam.
Exige a justiça (dike), mas também pressupõe amizade (philia), aquelas formas de mobilização afectiva que só podem combater a apatia se assentarem numa educação que também seja formação (paideia).
Só depois de referir a casa, a aldeia, e a genos é que Aristóteles trata da polis, assumindo a respectiva aparição de forma complexa. A polis, apesar de ser uma associação de várias aldeias, como estas são associações de várias casas, constitui, contudo, algo de qualitativamente diferente da anterior sucessão, dado ter em vista outro nível de fins.
Não visa apenas as necessidades vitais, não segue apenas a linha do parentesco, procurando um fim bem diverso, o bem viver. Não é também e apenas um conjunto maior que a aldeia, já que a genos, apesar de poder ser maior, não é uma entidade política, mas uma entidade étnica. Só a polis é, neste sentido, uma associação completa e perfeita.
Por outras palavras, Aristóteles reconhece a existência de comunidades anteriores à polis e que estão na base desta, aquilo que podemos qualificar como sociedades pré-políticas, e que teriam sido formadas pelo instinto natural. Mas não deixa de referir que, paralelamente à polis, continuam a existir comunidades, como a genos, cuja união não é marcada pelo bem que constitui o fim da polis.
A genos, por exemplo, se não é uma associação política, por não ser uma associação de homens livres e iguais, também não é algo de pré-político.
Do mesmo modo, não seriam políticas uniões estabelecidas por tratados de comércio ou tratados de segurança entre várias cidades.
Seguindo as próprias palavras de Aristóteles, temos que os homens não se associam tendo em vista apenas a existência material, mas principalmente tendo em vista a vida feliz (de outro modo uma colectividade de escravos ou de animais seria uma polis, o que seria, aliás, uma coisa impossível, porque tais seres não têm nenhuma participação na felicidade nem naquela forma de vida que se funda na vontade livre), e também não se associam para formarem uma simples aliança contra qualquer injustiça, da mesma forma não o fazem tendo somente em vista as trocas comerciais e as relações de negócios de uns com os outros.
Com efeito, não poderia ser qualificada como polis qualquer espécie de união de povos por intermédio de tratados comerciais (todos os povos ligados entre si por tratados comerciais, seriam como cidadãos de uma só polis), como sucederia com a esfera de influência dos cartagineses.
Nas uniões de povos por intermédio de tratados comerciais ou por tratados de segurança, apenas existem convenções reguladoras das importações, tratados proibindo as injustiças recíprocas, e alianças constadas por escrito. Mas não há magistraturas comuns a todas as partes contratantes, estabelecidas para se fazerem respeitar estes compromissos, conservando cada unidade os seus próprios magistrados. Nenhuma das partes signatárias jamais se preocupa com a moralidade dos cidadãos de outra polis, nem procura impedir que um destes se apresente como injusto ou vicioso de qualquer maneira: o único objecto destes acordos é evitar que os cidadãos de um país causem dano aos de outro. Todas as poleis que, pelo contrário, se preocupem com uma boa legislação, prestam uma especial atenção em tudo o que diz respeito à virtude e ao vício entre os respectivos cidadãos.
Acrescenta: a polis não é uma simples comunidade territorial, estabelecida com o fim de se impedirem as injustiças recíprocas e de se favorecerem as trocas. Sem dúvida, estas são as condições que devem ser necessariamente realizadas se queremos que uma polis exista; contudo, mesmo que se reunam todas estas condições, nem por isso existe uma polis. A polis é a comunidade do bem viver para as famílias e os agrupamentos de famílias, tendo em vista uma vida perfeita e independente. Portanto, tal comunidade não se realizará a não ser entre os que habitam num só e mesmo território e contratando casamento entre si. De lá nasceram nas cidades, ao mesmo tempo, relações de parentesco, fratrias, sacrifícios em comum e passatempos da sociedade. Ora, estas diversas formas de sociabilidade são obra da amizade, dado que a escolha deliberada de viver em comum não é outra coisa senão a amizade. Também, enquanto o fim da polis é a vida em felicidade, estas diversas formas de associação existem tendo em vista o respectivo fim. E uma polis é a comunidade de famílias e de aldeias numa vida perfeita e independente, isto é, segundo a nossa opinião, no facto de viverem segundo a felicidade e a virtude. Devemos pois considerar como princípio que a comunidade política existe para que possa realizar-se o bem, e não apenas tendo em vista a vida em sociedade
Na condimentação dos elementos constituintes há, contudo, um certo grau de fluidez e mistério. A polis para poder ser perfeita tem de ter uma dimensão óptima, não pode ser grande demais nem pequena demais, sob pena de perder a harmonia que sempre foi o sal da autarcia.
Como já dizia , em Politeia, a polis deve crescer tanto quanto seja possível, mas sem que jamais deixe de ser una, sem que se prejudique a respectiva unidade, de maneira que não pareça grande nem pequena, mas que permaneça numa justa medida e sempre una, para que não haja muitos cidadãos em um só cidadão, nem muitas poleis numa só polis .
Por outras palavras, a polis é a harmonia na diversidade, unidade na multiplicidade, não podendo ser grande demais nem pequena demais.
O que se conseguirá se a polis depender dos princípios: numa polis tudo depende dos princípios. Se começou bem, vai sempre crescendo como o círculo. Uma boa educação forma um bom carácter; os filhos seguindo desde sempre os passos dos seus pais, fazem-se depressa melhores do que aqueles que os precederam, e têm, entre outras vantagens, a de dar à luz filhos que os superam a eles próprios em mérito, como acontece com os animais.
Já em Nomoi vai mais longe e trata de matematicamente conceber essa unidade, fixando o número de 5.040 cidadãos, que corresponderia a cerca de 25.000 habitantes. E concebe tal, tendo em conta a extensão do território e as cidades vizinhas.
Porque desde que baste o território para o sustento de certa quantidade de habitantes moderados em seus desejos, é ele suficientemente grande, e não se deve estender além disso. Para a quantidade de habitantes, deve ser tal que se possam, em caso de ataque defender dos habitantes das cidades vizinhas, e também prestar-lhes socorro se por outros fossem atacados
É sobre este conjunto que actuam as leis e elas devem tornar a cidade perfeitamente una dado que aí reside o cúmulo da virtude política .
Já quanto a este tema, Aristóteles refere que a polis não pode ser muito pequena nem revestir uma grandeza excessiva, tendo de conservar a capacidade de poder cumprir a sua função, para propiciar a ordem e a coesão das diversas partes.
Desenvolvendo estes princípios, considera que se a sua população é muito fraca, não poderá ser auto-suficiente (ora, a polis é um ser que se basta a si mesmo), e se é muito numerosa, poderá bastar-se a si mesma nas necessidades essenciais da vida, mas isto será à maneira de um povo (etnos) e não de uma polis, porque não está apta a gerar instituições políticas.
Com efeito, para que exista uma polis, é preciso que se mantenha a justa medida: a vida feliz no seio de uma comunidade política, de maneira a que as diversas actividades da polis se partilhem entre os governantes e os governados, que quem governa tenha o ofício de comandar e de julgar os processos, e que os cidadãos se conheçam entre si .
Assim, considera que o limite ideal a observar para uma polis, é a maior extensão possível da população desde que seja compatível com uma vida que se baste a si mesma, e que possa ser abarcada através de um só golpe de vista.
Aristóteles pensava evidentemente na dimensão do Atenas, quase do tamanho do actual grão-ducado do Luxemburgo, com cerca de quarenta mil habitantes, com um terço de população urbana, mas onde apenas um sexto do total dos habitantes eram cidadãos.
Quando Aristóteles proclama que o homem é por natureza um animal político (anthropos physei politikon zoon), está a dizer que a exigência da perfeição, a procura do bem melhor, a tendência para a realização daquilo que é o seu bem o impelem para a polis.
Não está a dizer que o homem se une na polis por um bem menor, como aquele que o leva à constituição da família, em nome da satisfação das necessidades vitais. Não está apenas a dizer que o homem é um animal social, um animal que tende para a constituição de comunidades em geral, porque nem todas as comunidades são políticas.
Está a dizer que um determinado bem, o impele para uma certa espécie de comunidade a polis. E que esse determinado bem é, precisamente, o bem melhor. O bem que, por natureza, lhe exige, não apenas que viva, mas que viva bem.
O homem é um animal político, um animal da polis, um animal que tem tendência para constituir uma polis, que é a mais perfeita das comunidades e não uma qualquer sociedade. Ele podia ser um animal meramente social ou meramente familiar, sem ser um animal político. E por ser animal político, não deixa de ser um animal social e familiar, onde, além da base social, há a inevitável raiz animal.
É que para Aristóteles o homem é um ser complexo: pertence ao mundo terrestre (sublunar), mas faz parte do mundo celeste (supralunar). Ele não é um deus nem um bruto, mas tem algo de deus e de animal. E a polis está cosmicamente situada na parte superior do mundo sublunar: aquele que não tem polis, naturalmente e não por força das circunstâncias é ou um ser degradado ou está acima da humanidade.
A razão da distinção do homem com os outros animais está no facto de que, ontologicamente, o homem é único animal que possui a palavra. O único animal que razoa, que é um animal racional, como vão dizer os romanos. O único animal comunicacional, como hoje poderíamos dizer.
Assim, em Aristóteles, temos que a voz do homem não se reduz a um conjunto de sons. Não é apenas simples voz (phone), não lhe serve apenas para indicar a alegria e a dor, como acontece, aliás, nos outros animais, dado que é também uma forma de poder comunicar um discurso (logos). Graças a ela é que o homem exprime não só o útil e o prejudicial, como também o justo e o injusto .
É com base nestes pressupostos que Aristóteles proclama: o homem é o único dos animais que possui a palavra. Ora, enquanto a voz não serve senão para indicar a alegria e a dor , e pertence, por este motivo, também aos outros animais (dado que a respectiva natureza vai até à manifestação das sensações de prazer e de dor, e a significá-las uns aos outros), o discurso serve para exprimir o útil e o prejudicial, e, por conseguinte, também o justo e o injusto: porque é especificidade do homem, relativamente aos outros animais, ser o único que tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e doutras noções morais e é a comunidade destes sentimentos que gera a família e polis
Qualquer outra leitura deste entendimento aristotélico do conceito de animal político, não nos poderia fazer entender o que o mesmo autor escreve logo a seguir: a polis é, por natureza anterior à família e a cada um de nós considerado individualmente. O todo, com efeito, é necessariamente anterior à parte, dado que o corpo inteiro, uma vez destruído, faz com que não haja nem pé, nem mão, senão por mera homonímia ou no sentido em que se fala de uma mão de pedra: uma mão, deste género, serão uma mão morta.
A concepção do todo da polis em Aristóteles não pode pois ser reduzida a uma perspectiva meramente holística ou colectivista. É, pelo contrário, uma consequência inevitável do conceito aristotélico de natureza das coisas, que só pode ser perspectivada numa visão funcionalista.
Como ele, logo a seguir explica: as coisas definem-se sempre pela respectiva função e pela respectiva potencialidade; quando, por conseguinte, ela já não estão em condições de cumprir a respectiva obra, elas já não são as próprias coisas, mas somente aquilo que delas têm o mesmo nome. Que, nestas condições, a polis seja assim naturalmente anterior ao indivíduo, torna-se evidente: se, com efeito, o indivíduo, tomado isoladamente, é incapaz de se bastar a si mesmo, ele estará, relativamente à cidade, nos nossos anteriores exemplos, como as partes estão relativamente ao todo. Nestes termos, o homem que está na situação de incapacidade de ser membro de uma comunidade, ou que não sente minimamente a tal necessidade porque se basta a si mesmo, não faz, de todo, parte de uma polis e, por conseguinte, é ou um bruto ou um deus.
Se a polis é anterior a outras formas se sociabilidade, porque é superior a outras formas de sociabilidade, eis que a polis tem de ser anterior à vida individual, porque é superior à vida individual.
O homem é, de facto, o mais excelente dos animais, mas sem polis, isto é, separado da lei e da justiça, é o pior de todos.
Logo, a função da polis é a lei e a justiça, servindo para que o mais excelente dos animais, com a lei e a justiça, se não torne no pior dos animais. Porque, sem polis, pode passar a campear a injustiça armada. Só a polis permite que as armas do homem possam servir a prudência e a virtude, possam servir aquilo que é a natureza do homem, a sua exigência de perfeição.
Porque tais armas podem ser empregadas noutros fins exactamente contrários. É por isso que o homem é o mais ímpio e o mais selvagem das criaturas quando deixa de ter virtude, e o mais grosseiro de todos no que diz respeito aos prazeres do amor e do ventre. Mas a virtude da justiça é da própria essência de uma sociedade de cidadãos, porque a administração da justiça é a própria ordem de uma comunidade política.
Deste modo, o entendimento tripartido da polis (rebanho+casa+polis) leva a uma nova imbricação dos três fins da comunidade política. Não basta a segurança e o bem-estar que se obtêm com a primeira etapa da racionalidade, o bonum utile, com aquilo que leva à constituição de uma sociedade através de um contrato que vise pôr termo à guerra de todos contra todos, ao estado de guerra civil do homem lobo do homem, típica da distinção do amigo/inimigo.
A racionalidade técnica é apenas parte do logos e tem de ser potenciada pela racionalidade ética. O bonum utile tem de ser integrado no bonum honestum. O animal social tem de ser elevado à categoria de animal político. A sociedade tem de se transformar em comunidade, o contrato tem de volver-se em instituição.
A racionalidade técnica apenas marcada pela utilidade e pelo interesse, como acentuam o utilitarismo e o economicismo, tem de ser integrada pela racionalidade ética, onde a estrela polar é a justiça. Para um entendimento global da polis não basta o sócio e o contratualismo do administrador de bens ou do homem como animal de trocas. Impõe-se o entendimento do animal político, do homem como animal normativo e como animal simbólico. Impõe-se o político, a procura da boa sociedade, a procura do justo. A procura da justiça, não apenas como justiça comutativa, mas a justiça nas suas perspectivas ascendente e descendente, a justiça social ou geral e a justiça distributiva.