24.2.07

A ideia consensualista. Unidade na diversidade

A unidade na diversidade

A partir desta síntese estóica, greco-romana, a polis passou a conceber-se como algo que parte do particularismo, da diversidade e da diferença para atingir o universal. Para a descoberta do infinito pela atenção ao finito (J. Hirschberger), para a noção de que o universal é o local menos os muros, conforme as palavras de Miguel Torga.

A partir de então, conforma-se a essência do projecto europeu e ocidental de político, esse processo de resolver a oposição entre o uno e o diverso, de maneira diferente de certa metafísica oriental que logo trata de suprimir o segundo dos termos, através de uma ascese que apaga a diferença e o próprio indivíduo, a fim de fundar o uno sem distinção, como nos ensina Denis de Rougemont.

A partir de então, o pensamento clássico do político tratou de assumir que devem manter-se os dois termos da oposição, não em equilíbrio neutro, mas através de uma tensão criadora, daquela mesma que falava Heráclito : o que se opõe, coopera, e da luta dos contrários deriva a mais bela harmonia.

Porque só pode atingir-se a transcendência pela imanência. Porque todo o transcendente só pode ser um transcendente situado. Porque toda a essência só pode realizar-se através da existência. É o tal existencialismo que não é anti-essencialista e o tal laicismo que não é deicida.

Saliente-se, contudo, que a poliarquia da república romana vai, depois, ser expropriada pelo princeps, acabando por ser esmagada pelo peso do Imperium, primeiro, quando, com Diocleciano, o Imperator se assume como dominus e deus e, depois, quando, com Constantino, a cidade-Estado volta a ser cidade-Igreja. Quando deixa de haver separação entre o que era de César e o que era de Deus e a autonomia da política passa a ser absorvida pela moral religiosa, principalmente com o chamado agostinianismo.

Contudo, o modelo poliárquico, de matriz aristotélica e estóica, vai renascer e é desta semente que emerge a perspectiva medieval do reino e da cidade, as novidades pós-feudais e pós-imperiais que emergem nos séculos XII e XIII e que têm em São Tomás de Aquino o principal teórico.

Dá-se, então, a restauração e a cristianização da ideia de política, reagindo-se assim contra a expropriação do político pelo império e da autonomia da política pela moral religiosa, como acontecera durante a vigência do constantinismo e do agostinianismo.

A polis voltou a ser unidade de ordem e não unidade substancial, onde o todo deixou de significar fusão das partes que o compõem num ser unidimensional, num totum continuum, num simpliciter unum. A polis passou a ser vista como mera essência relacional, como simples unidade de relação.

Por outras palavras, consagrou-se a circunstância de não poder haver polis sem autonomia dos cidadãos, a fonte do consentimento, a origem imediata de todo o poder político. Porque a unidade engloba os cidadãos, mas sem os absorver, sem os diluir, sem os totalitarizar. Porque a unidade não é unicidade, tal como o todo não é o totalitário. A unidade é unidade na diversidade, diversidade de funções, mas harmonia para um fim unitário, um bem comum mobilizante.

A polis é apenas forma que se dá a uma determinada matéria: os indivíduos, tornados pessoas. É mais um processo do que uma coisa, é mais relação e estratégia do que objecto e coisificação.

É este o principal contributo de São Tomás, quando vai falar na civitas como a união estável de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, um fim que identifica com o bem comum, entendido como a síntese da ordem e da justiça.

A civitas aparece como uma perfecta communitas, como uma unidade auto-suficiente, como uma entidade suprema, dado englobar outras comunidades, como as famílias e as aldeias, mas que apenas constitui uma unidade de ordem, um totus ordinis, onde existe aquela gubernatio que permite conduzir convenientemente o que é governado a um determinado fim.

Pode, a partir de então, proclamar-se que há uma diversidade de cidades resultante da diversidade de fins e das maneiras diferentes que cada cidade tem de tender para o mesmo fim. Isto é, podem escolher-se fins diferentes e até há maneiras diferentes de tender-se para o mesmo fim.

Estão assim criadas as bases que hão-de ser desenvolvidas por todo o posterior consensualismo, defensor da concepção racional do político, onde hão-de confluir tanto a neo-escolástica peninsular, de cariz católico, com destaque para as teses de Francisco de Vitória e Francisco Suarez, como certo pensamento protestante pós-teocrático, de Johannes Althusius a John Locke.

A polis é tão só uma sociedade perfeita porque tem um fim perfeito. É uma entidade superior que engloba várias entidades inferiores. Uma entidade perfeita que tanto pode cingir entidades imperfeitas como várias entidades perfeitas.

Porque a política é sobretudo simbiótica, é aquilo que faz simbiose, que faz unidade na diversidade. Como vai dizer Althusius é o que permite a comunicação mútua daquilo que é necessário e útil para uso e consórcio da vida social.

Não basta o que é comum aos animais, o que faz com que haja rebanhos, importa a racionalidade técnica, dos que procuram o bem- estar e a segurança. Mas essa racionalidade técnica, comum às sociedades imperfeitas, como a casa e a empresa, não chega. Serve para os sócios resolverem a questão do bonum utile, não chega para se atingir o bonum honestum da racionalidade ética, só passível de cidadania.

Os homens, com efeito, consociam-se de maneira diversa. De maneira simples ou privada, contratual ou societária, onde há comutação. Mas também se consociam de maneira complexa, mista ou pública, para constituírem comunidades perfeitas, norteadas pela justiça global, pelo que à justiça comutativa tem de acrescentar-se tanto a justiça distributiva como a justiça social.

A forma complexa, mista ou pública de consociação é aquela onde muitas consociações privadas ou simples se unem, como salienta o mesmo Althusius, pelo direito de poder comunicar e participar o útil e necessário para a vida do corpo constituído.

Eis a polis, a tal consociação universal, pública e maior, continuando Althusius.

O tal corpus politicum et mysticum que, segundo Suarez, resulta de um específico acto de união para uma associação moral, a tal comunidade mística, unida por um fim, uma comunidade politicamente organizada e não apenas uma multidão inorgânica.

A polis não é apenas societas, pensada através de um omnes ut singuli, referido por Francisco Suarez, ou pela vontade de todos de Rousseau, onde cada um exprime a sua vontade pensando nos respectivos interesses. A polis é algo de mais: é a vontade geral, de Rousseau, onde cada um se exprime pensando nos interesses do todo, é um omnes ut universi, conforme as palavras de Suarez.

Na polis há uma especial vontade ou um comum consentimento para se reunir um corpo político, para voltarmos a Francisco Suarez. Surge assim uma polis, a sociedade de vida, constituída mescla, em parte privada, natural, necessária, espontânea, em parte pública, segundo as palavras de Althusius.

Não caem estas correntes nos vícios soberanistas do absolutismo. Para eles, a polis é uma sociedade perfeita, perfeita em relação a si mesma, por ser dotada de uma autonomia intrínseca - por ter uma plenitude de direito e de poder, por possuir um governo - e de uma autonomia extrínseca - e perfeita relativamente a sociedades idênticas.

Polis é povo, societas e contrato. É povo politicamente organizado, é comunidade e é instituição. É sociedade organizada, dotada de um poder supremo, tendo um status politicus ou civilis (uma estrutura política), uma civitas (um corpo íntegro, um conjunto de indivíduos associados) e uma res publica (a administração dos assuntos comuns da governação), como assinalava Espinosa. É, como dizia Rousseau, acção do todo sobre o todo, o tal ser comum feito de uma multidão de seres razoáveis. É, nas palavras de Aron, a colectividade considerada como um todo. Ou, para subirmos à perspectiva de Kant, um Estado-Razão, o tal contrato original pelo qual todos os membros do povo limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo como membros da comunidade, o povo olhado como universalidade. Onde a vontade geral, o omnes ut universi, é a vontade do geral, a vontade do universal.

Impõe-se, portanto, que cada polis, segundo os termos do mesmo Kant, seja res publica, potentia e gens, que seja, ao mesmo tempo, comunidade, autonomia e nação, que seja associação de pessoas, com poder, mas enraizada numa comunidade de gerações. Não basta o contrato, mas não se exclui o contrato. Exige-se algo de mais: instituição, comunidade. Mas sempre através do plebiscito de todos os dias, de que falava Renan, um plebiscito praticado em torno das coisas que se amam.